//pagead2.googlesyndication.com/pagead/js/adsbygoogle.js
(adsbygoogle = window.adsbygoogle || []).push({});
A narradora acompanha o espectador pelas ruas de Istambul, mergulhando-o nas suas recordações da cidade e nos factos com que se confronta aquando do seu regresso. Numa dessas ruelas escuras, onde Ayla vivera 12 anos antes, conhecera uma vizinha que teria vivido uma história de amor proibido com um parente mais velho. A história é narrada numa obra de Orhan Pamuk, que teria reconstruído os acontecimentos com base em depoimentos de amigos e familiares de Füsun e Kemal, o casal de amantes. Ao perdê-la, Kemal começa a construir um santuário para uma relação que nunca o foi, recolhendo memórias de uma forma obsessiva, na forma de objectos, fotografias, peças de vestuário, que guarda na casa onde Füsun viveu um dia. Essa casa é agora o Museu da Inocência, um lugar onde os objectos expostos traçam o caso de amor descrito no romance do mesmo nome.
A feliz colaboração do escritor Orhan Pamuk e o realizador Grant Gee (mais conhecido pelo seu documentário de 1998 sobre os Radiohead, Meeting People Is Easy) pode ser descrita como um ensaio ou um documentário fictício, mas a descrição mais adequada seria a de viagem cinematográfica pelos meandros de um livro. Aqui, a realidade e a ficção entrelaçam-se numa narrativa de vários níveis. Desenganem-se os que esperam assistir a uma adaptação fílmica dos acontecimentos descritos na obra: a experiência criada pelo filme é realmente a de ler o livro. Em nenhum momento encontramos uma linha cronológica contínua ou uma cara a que possamos associar uma personagem. O fio narrativo desenrola-se através dos relatos de Ayla, ora baseados na sua memória ora descrevendo o que só soube mais tarde, guiados pelos travellings quase sonâmbulos da câmara pelas ruas de Istambul, por imagens de arquivo e pelas vidraças do Museu da Inocência. A história dos protagonistas Füsun e Kemal, cujos contornos fantasmagóricos se vão desenhando por meio da sugestão, oculta ainda um outro nível narrativo, onde as verdadeiras personagens são a cidade, o museu e o próprio Pamuk – que contribui para a narrativa com entrevistas pessoais onde esclarece o seu processo criativo: ao vencer o Nobel da Literatura em 2006, e sendo um apaixonado por museus – em particular, os museus pequenos, cujo potencial contador de histórias é sem dúvida maior do que o dos grandes edifícios que albergam as obras intemporais – teve a ideia de criar uma experiência narrativa, que primeiro originou o livro e, posteriormente, o museu. O aspecto mais fascinante do filme – que será também o do livro – é a forma deliberadamente ambígua como coloca o espectador perante três hipóteses na génese da narrativa: estaremos perante factos verídicos relatados ao autor, perante uma história ficcionada, ou perante a história do escritor que se projecta na das suas personagens?
E na verdade, a resposta pouco importa. Se a história de Pamuk é um lugar único de fusão entre o real e o imaginado e uma carta de amor à cidade de Istambul – que semeia no espectador uma vontade imensa de conhecer o museu e a cidade para lá dos seus roteiros turísticos – o trabalho de Grant Gee não é menos surpreendente na evocação de um sentido de lugar e de tempo (a enigmática e tradicional Istambul dos anos 70), na forma como explora a ligação entre os objectos e as lembranças (como estas se constroem, se recompõem e se cristalizam) e ainda no detalhe com que consegue traçar, na montagem, a história social e cultural da Turquia nas últimas décadas (em particular, no que toca ao choque de culturas, ao conservadorismo ou ao papel das mulheres). É difícil recordar um filme com tamanha simplicidade e minimalismo e simultaneamente tamanha capacidade de metatexto. Um documentário baseado num museu baseado num livro, Innocence of Memories é, para além de um belíssimo filme, uma introdução intrigante à obra literária de Pamuk e um documento visual estranho mas arrebatador sobre a saudade, a memória, o amor e a perda.