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Jackie
Título Português: Jackie | Ano: 2016 | Duração: 99m | Género: Biografia, Drama
País: E.U.A., Chile, França | Realizador: Pablo Larraín | Elenco: Natalie Portman, Peter Sarsgaard, Greta Gerwig, Billy Crudup, John Hurt

O público não se cansa das grandes histórias de amor e de morte, negligenciando muitas vezes as verdades e factos em detrimento do romance e do espectáculo. É essa a razão da prolixidade de trabalhos cinematográficos e televisivos sobre o presidente John F. Kennedy, cuja popularidade, cristalizada pela sua morte trágica, é apenas comparável à da sua esposa. São também muitos os filmes e séries sobre ela e muitas as actrizes que a encarnaram (nenhuma de forma memorável), contribuindo para a idealização da sua figura sem nada revelar sobre a mulher por detrás da eterna Primeira-Dama. Retemos apenas a ideia de símbolo de elegância e classe, uma certa apatia, uma certa doçura, uma certa frieza. O primeiro filme em território americano do chileno Pablo Larraín, criando a expectativa de irromper nesse mistério, exibe-a no seu grande momento de dor e fraqueza: os dias que se seguem ao assassinato do marido. É um  retrato (im)possível que pretende transpor a esfera pública para entrar na esfera íntima e examinar a solidão daquela mulher, num processo de luto simultaneamente privado e público, destroçada e sozinha no centro de um mundo que sustém a respiração enquanto a observa nos mais ínfimos movimentos. Sobretudo, é um filme para Natalie Portman, desenhado para fazer brilhar a sua beleza e talento.

Esse é de facto o grande trunfo de Jackie, um trabalho cujas demais características são necessariamente absorvidas pela figura de Natalie Portman como a grande protagonista. Mas o pano de fundo não é acessório. O elenco secundário é fortíssimo  – com destaque para John Hurt no seu último papel (o actor faleceu recentemente) e, em especial, para Peter Sarsgaard (no papel de Bobby Kennedy), num registo urderacting (seu apanágio) que funciona aqui como perfeito contraponto à performance intensa de Portman. Há também grande minúcia no design de produção, na reconstituição de cenários históricos (como o cortejo fúnebre de JFK, desenhado pela Primeira-Dama a partir das descrições do funeral de Lincoln ou a famosa entrevista à Life Magazine em 1963), dos interiores da Casa Branca e do guarda-roupa, na montagem justaposta das imagens de arquivo, na adequadíssima banda-sonora de Mica Levi em jeito de requiem discreto e persistente. Quanto à protagonista, a câmara é impiedosa e não a abandona por um minuto, move-se insistentemente sobre ela abusando dos close-ups e planos médios, pede-lhe o impossível: revelar a intimidade daquela mulher. O problema é que o papel exige a capacidade de representar uma figura que também representava (no comportamento, na pose, nas inflexões afectadas da voz), uma mulher que deliberadamente fabricou uma imagem e se transformou numa estrela e no símbolo de uma época. Esta dimensão de meta-representação traz ao papel uma artificialidade ingrata: convencer, na pele de alguém pouco convincente, acarreta a impossibilidade basilar de ser credível. Impenetrável e frágil, a performance de Portman tem a aura necessária de superficialidade e dissimulação, e nisso a sua composição é impressionante.

Jackie é um filme de simpatia difícil, adopta uma perspectiva que não deixa de ser algo panfletária (um certo endeusamento da figura de JFK e uma ridicularização velada do seu sucessor) e não traz qualquer novidade sobre os acontecimentos ou sobre os seus protagonistas. Não desprezando o auxílio da maquilhagem, figurinos e penteados, a mímese de Portman é perfeita e valeu-lhe a nomeação para o Óscar de melhor actriz.  Mas da pessoa, ficamos a saber o mesmo: muito pouco. O filme opta por não revelar o que não sabe e não ficcionar demasiado o que desconhece, mantendo-a distante e opaca. Nesse sentido, Jackie é um exercício que exige um equilíbrio complexo (especialmente para a actriz), abrindo uma porta de entendimento para os afectos e angústias da jovem esposa e mãe mas acabando por centrar-se nas estratégias, algumas de sobrevivência, outras de autopromoção, conscientemente empregues pela mulher que criou o mito. Não foi Larraín a fragmentar a insondabilidade da figura de Jackie, e ainda bem, é dela que vive o ícone.


sobre o autor

Edite Queiroz

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