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Jason Bourne
Título Português: Jason Bourne | Ano: 2016 | Duração: 123m | Género: Acção, Thriller
País: Estados Unidos | Realizador: Paul Greengrass | Elenco: Matt Damon, Tommy Lee Jones, Alicia Vikander

Jason Bourne entrou no século XXI pelas mãos de Doug Liman vindo de uma colecção de livros aborrecidos e mal-amanhados de Robert Ludlum. Nem procurem semelhanças, que os filmes são bem diferentes; no entanto, foi na mão de Paul Greengrass, britânico que transformara Bloody Sunday num daqueles objectos capaz de revoltar até o Dalai Lama, que a franchise se tornou numa das coisas mais excitantes dos últimos anos. A trama gira em torno de um Bourne que Matt Damon interpreta como alguém que esqueceu o seu passado de mortífero agente da CIA, perseguido por toneladas de equipas e “recursos” e ecrãs de computadores. No entanto, o que trouxe de novo para o cinema de acção foi a pulsão e tensão da steadycam usada como recurso de visceralidade: as lutas na saga Bourne aleijam o espectador, os choques e explosões lançam destroços imaginários sobre os espectadores na sala de cinema. Greengrass tornou-se no incontestado mestre usando este recurso e praticamente todos os imitadores que se lhe seguiram fracassar porque não perceberam o segredo da técnica: não se trata do movimento ou da imediatez, trata-se de apresentar coerência geográfica do movimento, estabelecer ao espectador a acção e o espaço e também aproximá-lo da intencionalidade dos golpes sofridos e desferidos.

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Tudo estava fechado após The Bourne Ultimatum, e mesmo uma fita no intermédio com Jeremy Renner a funcionar no mesmo imaginário como alguém diferente tem como principal qualidade ser esquecida rapidamente. O último plano do terceiro filme de Bourne era perfeito: o homem amnésico, recuperando parte importante da memória, desaparecia nas águas como um tubarão, para não mais voltar… pensávamos nós. 2016 traz o regresso de Greegrass e Damon à franquia e confesso que estava bastante empolgado: o realizador sabe fabricar a minha droga, fazendo-me vibrar no assento com as imagens tremidas mas seguras, com a noção de intensidade correcta e a vontade patológica de colocar câmaras nos locais mais inauditos só para trazer a sensação do estrondo e do estalo. Sendo honesto, acho que a única razão pela qual valeria a pena uma nova adição a esta saga teria pouco de acção e centrar-se-ia no regresso de Bourne a casa. Não é esse o motivo, que é bastante pífio, e a narrativa de Jason Bourne é um básico ir de A para B para C e daí por diante, com três grandes cenas de acção a unir toda a história.

É o principal defeito do filme, e o facto de o guião ter sido escrito a quatro mãos entre o realizador (que não é conhecido por ser um brilhante guionista) e o editor já devia indicar que este seria um filme com ideias visuais já definidas entre ambos. O resto teria de se encaixar nesse grande plano. Nota-se: o diálogo é pedestre, o que não atrapalha um Matt Damon que deve ter umas vinte falas no filme todo, e a intriga previsível e, para um regresso que se queria justificado, quase inerte. Tenta-se apimentar a coisa com uma história que envolve novamente um estado-vigilância, redes sociais e aplicações móveis (depois dos comentários acerca do jogo Pokemon GO, Oliver Stone deve rejubilar com esse filme; mas o abuso do cheiro Snowdeniano neste género de histórias em tempos recentes faz com que o seu próprio filme sobre o delator americano pareça envelhecido e ultrapassado ainda antes de estrear). Mas era perfeitamente escusado: centrar tudo em Bourne, na sua auto-descoberta e do que deixou para trás seria bem mais interessante e traria uma bolsa emocional que, apesar das fantásticas tropelias que traziam, os filmes anteriores da saga conseguiam ter: a dor do passado, o arrependimento, a frustração do desconhecimento, ser uma espécie de autómato programado à procura da vontade e escolha próprias. Isso não se sente neste novo Jason Bourne.

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A questão é que o filme compete contra a sua própria herança, e grande parte dos defeitos ficam mais salientes por isso mesmo. O que o salva, e na verdade o que acaba por interessar de facto, são precisamente as três grandes sequências de acção que o constroem. São do catano. Greengrass dá um toquezinho de intenção política visitando locais tão emblemáticos dos últimos anos como Reiquejavique e Atenas, centros de tumulto no descalabro financeiro. É em Atenas, aliás, que se desenrola um fabuloso jogo do gato e do rato entre um Bourne que andava pelo país desperdiçando os dias em combates a dinheiro e regressada Nicky Parsons, com Julia Stiles garantindo alguma continuidade nos procedimentos. É incrível como o realizador consegue traçar a coerência da perseguição entre a total confusão dos tumultos de uma multidão contra a Polícia, sem esquecer o pequeno detalhe que torna o caos pessoal, possibilitando algumas imagens que ficam na retina. Atenas a ferro e fogo e é satisfatório ver o realizador a representar a Atenas de Costa-Gavras, um dos cineastas que mais inspirou o seu estilo. O filme quer ter algo a dizer e nestes momentos quase consegue, de facto. É no final do filme que regressa a perseguição automóvel que se tornou numa das imagens de marca da série, desta vez com um camião blindado a fazer da grande avenida de Las Vegas a sua pista de bowling pessoal. É um concerto de jazz experimental de ferro e destroços, que faz encolher o espectador no assento, com a ideia de ver projectado metal na sua direcção. É verdade que as grandes cenas do género da série (a perseguição e luta nos telhados de Tangiers e um táxi brincando aos carrinhos de choque com o trânsito moscovita) continuam insuperáveis, mas é normal. É neste frenesim que o filme se reencontra, e à sua motivação e a verdade é que mesmo coxo de uma boa história, continua a ser bem mais satisfatório do que a maior parte dos blockbusters recentes.

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Apesar da falta de substância, os actores estão lá. Damon faz esta personagem em piloto-automático (e às vezes, é isso que acontece, mas sem trair o tom), Tommy Lee Jones é Tommy Lee Jones (como em todos os filmes em que entra) e a adição de Alicia Vilkander como agente da CIA com motivações ambíguas é a única coisa que traz alguma nuance ao filme. Vincent Cassel faz uma perninha como o adversário de Bourne e embora sem muito para fazer (e é pena, porque a sua história poderia dar-nos algo bem mais complexo), a sua fisicalidade é um excelente complemento ao estilo de Greengrass.

Se não gostarem deste estilo, o melhor é ficarem em casa: Greengrass é incapaz de usar três planos quando pode muito cortar dez vezes e criar a impaciência do momento no espectador. Embora nunca traia a coerência da cena e até um sentido estético que escapa a muitos, percebe-se que alguns espectadores não entrem no jogo. Esta sequela talvez não seja necessária e Bourne passaria bem sem ela; no entanto, a satisfação de ver um dos grandes realizadores do género de regresso a um mundo que tornou tão influente que o próprio James Bond, quando se reinventou, teve de cumprir a homenagem em Casino Royale, é demasiado boa para passar ao lado. Não vão pela história, vão pelo caos: afinal, foi daí que surgiu o Universo, e não é por isso que não nos sentimos fascinados com ele.


sobre o autor

Bruno Ricardo

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