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Dois anos depois de Hiroshima, Meu Amor, Alain Resnais voltou a quebrar as convenções narrativas e a explorar os labirintos da memória num filme que, apesar de ter conquistado o Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza, dividiu a crítica como nenhum outro na carreira do cineasta. Obra-prima absoluta, disseram uns na altura, pretensioso e sem sentido, acusaram outros, e 55 anos depois da estreia, L’Année dernière à Marienbad continua a despertar iguais doses de fascínio ou desdém.
Tentar descrever um filme como este pode parecer tão simples como analisar um quadro abstracto, mas a verdade é que, para aqueles que se deixam seduzir pelo seu jogo narrativo, L’Année dernière à Marienbad torna-se um desafio estimulante.
Escrito por Alain Robbe-Grillet, um dos maiores nomes do nouveau roman francês dos anos 50 (que, tal como a nouvelle vague fez com o cinema, renovou a linguagem literária ao propor um novo estilo narrativo e, principalmente, descritivo), a (in)acção do filme centra-se totalmente numa espécie de palácio internacional, completamente isolado do mundo exterior, com uma decoração barroca e uma atmosfera hermética. No interior do hotel há uma clientela anónima, bem vestida e desocupada, que se comporta como se tivesse sido vítima de um encantamento. Tal como nos sonhos, essas personagens são guiadas por algo que está para além da sua vontade.
X (é assim que é designada a personagem principal, e a falta de um nome serve também para realçar o carácter onírico da obra) divaga ao longo do hotel e, no meio das personagens anónimas, há uma jovem (designada por A) a quem ele se dirige. Tal como todas as outras personagens, também A está presa numa cela dourada e labiríntica, onde o tempo e a memória parecem ter sido abolidos. No entanto, X oferece-lhe um passado, dizendo que eles já se tinham encontrado e amado no ano anterior e que, tal como ficara então combinado, ele tinha voltado para fugirem juntos. A (que é também observada por outra personagem, designada por M e que actua como se fosse seu marido) começa por encarar as descrições de X, sobre a relação que tiveram no passado, apenas como um jogo ou uma ilusão. No entanto, mas as explicações dele são cada vez mais consistentes.
A ausência de linearidade na narrativa, assim como a fotografia a preto e branco, intensificam o ambiente ambíguo que atravessa toda a obra. X, o narrador omnisciente, consegue reconstruir com grande precisão «o último ano em Marienbad», mas as suas descrições, de tão minuciosas que são, acabam por contribuir ainda mais para a atmosfera sombria que nos é apresentada. E essa atmosfera, apesar da passividade das personagens, transmite suspense. Um suspense que surge pela originalidade da estrutura do filme, capaz de deixar o espectador à deriva, mas também expectante quanto ao que se seguirá em cada momento.
Se, no universo do filme, X representa o inconformismo e A representa a indecisão, M apresenta-se como a racionalidade. Ele é uma espécie de protector desse mundo isolado e intemporal. Cada movimento que faz e cada palavra que diz parecem ser previamente calculados.
É verdade que a maior parte da narrativa de L’Année dernière à Marienbad é descrita por X, mas se tivesse de ser escolhida uma personagem que representasse a figura do realizador, essa personagem seria M. É ele que esclarece o significado da estátua que X e A observam e comentam no jardim, e a identidade das duas personagens de mármore: «Esta estátua é de Carlos III e sua esposa, mas não data, naturalmente, desta época. A indumentária antiga é puramente convencional.» X estava a comparar a situação do homem e da mulher de mármore à sua própria situação diante A, mas M aparece para pôr fim a essa ilusão. É também ele que diz conhecer um jogo de cartas em que ganha sempre. Quando lhe perguntam como é que isso é um jogo se ele não pode perder, M responde: «Posso perder. Mas ganho sempre.» E, de facto, ele repete esse jogo em várias ocasiões, com diferentes personagens, e ganha sempre – o que, simbolicamente, reforça a influência que tem no desenrolar da narrativa.
Apesar de tratar A por «meu amor perdido», M é o espectador mais atento do romance entre ela e X. A sua discrição não o impede de saber tudo o que se passa entre aqueles dois. Por vezes, dá até a sensação de ser ele que controla esse romance, como se fosse ele o autor dos seus encontros e desencontros.
Variação psicológica sobre o amor perdido, sobre o esquecimento e a memória, o filme é um painel de hipóteses que convida o espectador a dar a sua resposta e a sua própria visão da obra. Colocam-se as questões mais óbvias: será que X e A se encontraram realmente no último ano em Marienbad? Será que planearam fugir, como ele afirma continuamente? A obra nunca faz distinção entre o que é recordado e o que é apenas sonhado ou desejado, porque Marienbad é um lugar simultaneamente real e fictício, onde o tempo corre de forma circular.
Assim, «o último ano» que o título anuncia ocorre continuamente no instante em que é evocado. Quando, no final da obra, A e X se encontram, é como se a jovem admitisse que, de facto, já tinha havido qualquer coisa entre os dois no «último ano em Marienbad». Mas o que acontece é que este encontro é o mesmo do ano anterior, ou seja, a narrativa voltou ao passado, sem nunca ter saído de lá. E a história de amor que é contada como tendo acontecido um ano antes, só então (no fim da obra) é que irá começar… novamente. Percebe-se, então, porque é que a primeira frase de X no filme, antes mesmo de qualquer descrição, é precisamente: «Uma vez mais».