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Mad Max: o filme que não faz sentido.
Tudo tem a sua forma de estar e de funcionar. Tanto na natureza, como em criações humanas (que, argumentativamente farão parte da natureza), decorrem padrões que definem a forma como tudo se move e engrena. E nós, por motivos evolutivos, estamos aptos para reconhecer esses padrões – é-nos inato, já que todos os que não reconheciam padrões como quando fugir de predadores pereceram pelo caminho.
Do mesmo modo, qualquer voraz espectador de cinema por esta altura já será suficientemente astuto para ter percebido determinadas regras infalíveis e não cair em esparrelas que os grandes estúdios (principalmente) nos colocam à frente.
Depois de vermos colossais Spielbergs, Lucas e Ridley Scotts falharem, aprendemos a desconfiar de prequelas, remakes, reboots e sequelas tardias. Depois de estarmos cerca de duas décadas a ver blockbusters a esfregarem-nos CGI na cara, aprendemos a afastar-nos dos blockbusters de acção. Sabemos que algo cheira mal quando substituem um actor de um papel icónico. Já vivemos suficiente para saber que quando a produção de um filme se prolonga e fica em suspensão por anos, vai tudo correr mal.
Da mesma forma, também os estúdios perceberam alguns padrões que lhes ajudam à sobrevivência.
Sabem que um filme que seja para maiores de 18, ou 16, perde imediatamente uma substancial parcela de eventuais espectadores. Sabem que efeitos práticos não valem o esforço, visto que tem havido uma movimentação massiva para festins de CGI. Sabem também que as mulheres servem para o herói ter um interesse, para incluir um subenredo romântico e para exibir os seus corpos voluptuosos. E sabem que o herói tem que ter um passado identificável, e ter objectivos ideológicos, serem role-models.
Só que, bem cedo, Mad Max: Fury Road, sem avisar ninguém, desvia dessa estrada, atropela e explode com todas essas regras e segue pelo deserto sem se preocupar com as consequências. Num mundo de blockbusters áridos e inférteis, é um blockbuster sobre um mundo árido e infértil que desvia da norma e atira-te com tudo o que tem à cara. E faz sentido que assim seja. Se queres meter o teu público a vibrar com o que se passa no ecrã, não parece estranho, em retrospectiva, que se pretenda, em termos de meta-conceito, tirar o tapete de baixo dos pés da plateia, e colocá-la insegura e desnorteada.
Os desvios da norma não param aqui: o realizador do «Porquinho Chamado Babe», o director de fotografia de «Paciente Inglês», delineado por quem delineou aquele filme das Tartarugas Ninja dos anos 90, com um conceito fortemente agarrado às ideias da importância de fertilidade e de engrandecimento feminino. O que obténs? A mais louca e viril viagem de fogo, sangue e motores de 8 cilindros dispostos em V, abastecida de gasolina e testosterona. Para termos noção; aquele trailer que tanto prometia apenas contém imagens dos primeiros 20 minutos de filme!
George Miller, ao contrário do que muitos fizeram, sabe o porquê do carinho que a comunidade tem pela sua criação. E sabe o que é que os fãs querem. E sabe como dá-lo. E não está para m****s.
Uma das características narrativas mais fortes de Miller nos filmes da série Mad Max, era a apetência para mostrar em vez de contar. E aqui mantém isso. Não precisamos de saber como Immortan Joe construiu o império dele. Não precisamos de saber como é que Furiosa se tornou numa lacaia dele. Não precisamos de entrar em detalhe sobre como capturaram ou para que capturaram Max. Nem sequer precisamos de saber como é que a sociedade caiu ou quais os planos de Immortan Joe. Tudo o que precisamos de saber é o que nos dão.
Outra coisa que não pode deixar de ser realçada é o papel de Charlize Theron. O filme poderia perfeitamente não ter Max e ser sobre Furiosa que ninguém se queixava. E encabeça uma série de mulheres que foge ao lugar que vulgarmente têm no cinema (e também noutros tipos de ficção), que é o de se contentarem com a função de “serem gajas”. Com um subcontexto que lida com fertilidade, estas mulheres recusam-se a serem donzelas em apuros e traçam o seu próprio destino, com as suas próprias características. «We are not things», dizem elas, algo que muitos produtores e argumentistas podiam ouvir com atenção (desviando um bocado do assunto; Tarantino e Cameron são ávidos exemplos da importância do engrandecimento feminino, e olhem os resultados que ambos obtém nas respectivas modalidades).
Como dizia, Miller não está para m****s. Sentas-te no teu lugar, e mal tens tempo para pensar; a acção começa quase imediatamente e só acaba no fim dos créditos. E estou a falar de acção a sério. Conseguimos ter noção de onde estamos e de tudo o que se está a passar (f***-**, finalmente!), os efeitos são sobretudo práticos e não gerados a computador (f***-**, finalmente!), o universo criativo daquele mundo é espantoso, apenas o frenesim de tudo o que se passa nos consegue distrair de contemplar a estética Desert Punk. A banda sonora inquieta e palpitante ainda piora tudo (no bom sentido, claro), principalmente quando se torna diagética (refiro-me, claro, ao esplendoroso guitarrista que deita fogo, que prova que nem tudo que é belo deverá ser útil). Os performances são convincentes. A fotografia é brilhante; em termos cromáticos Miller optou por dar vida ao deserto pós apocalíptico com tons azul e laranja (que geralmente irritam de tão usuais que são, mas… desta vez estamos numa paisagem que é sobretudo céu e deserto, que são…. efectivamente cor-de-laranja e azul marinho), e é dotada de movimentos frenéticos e ângulos que tornam tudo aquilo massivo – tanto o deserto como a armada do Immortan Joe. Tudo misturado, temos uma enorme perseguição sem escrúpulos nem piedade, emocionalmente de tirar o fôlego e visualmente empolgante (ou ao contrário, se preferirem).
Claro que não é perfeito. Tom Hardy, embora competente, por vezes perde protagonismo, e é caracterizado por flashbacks de montagens rápidas, um artifício que me parece um bocado batoteiro para tudo o que demais é feito neste filme. E há umas contradições a regras estabelecidas no universo ‘Mad Max’ que não consigo ignorar. Mas nada disso interessa. Essas regras quebradas não só são justificadas pelo resultado desses desvios, como considero que é na forma como quebra, ou melhor dizendo, atropela as regras, que Mad Max: Fury Road ganha. Ganha, e de que maneira! De, como espectador, ser tratado com respeito.
Artigo de Luís Sá
A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)