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Por ocasião dos 200 anos da primeira publicação de Frankenstein, considerada a primeira obra de ficção científica da literatura mundial, estreia enfim um biopic sobre a mulher que lhe deu vida – a britânica Mary Shelley. Ambientado na Inglaterra pré-vitoriana, a primeira longa-metragem internacional da cineasta iraniana Haifaa Al-Mansour (uma das poucas mulheres cineastas sauditas e autora do aclamado Wadjda) é um drama de época que observa a juventude de Mary Wollstonecraft Godwin, o encontro com o poeta Percy Bysshe Shelley e a tumultuosa história de amor que terá inspirado a criação do mais famoso mostro da literatura romântica.
Filha da escritora feminista Mary Wollstonecraft (que morreu no parto) e do filósofo William Godwin (Stephen Dillane), Mary (Elle Fanning) terá recebido do pai uma educação rica e liberal, que a converteu numa adolescente inconformada com as convenções da feminilidade, fascinada por histórias de terror e curiosa com os avanços da medicina. Com apenas 17 anos, conhece o poeta Percy Shelley (Douglas Booth), então casado, com quem logo se identifica pelas suas ideias progressistas. Fogem juntos, mas o romance começa rapidamente a enfrentar dificuldades, pela crítica social a que o casal é sujeito, pelas dificuldades económicas graves e pelo comportamento errático de Percy, cujo alcoolismo e envolvimento com outras mulheres (na apologia do amor livre) deixa Mary desiludida. Em 1916, o casal é convidado a passar o Verão em Genebra na propriedade de Lord Byron (Tom Sturridge), de quem a meia-irmã de Mary está grávida. Numa noite especialmente chuvosa (que se prolonga por vários dias), Lord Byron desafia os convidados a escrever uma história de terror. É nessa altura que Mary – que acabara de perder um bebé – começa a esboçar a sua criatura. Frankenstein: or the Modern Prometheus viria a ser anonimamente publicado em 1818 com prefácio de Percy Shelly, já que os editores consideraram a obra demasiado invulgar e até inadequada para uma adolescente de 18 anos, duvidando até da sua autoria. O livro fez sucesso imediato, foi rapidamente adaptado para o teatro (a montagem mais antiga data de 1923) e segunda edição, publicada em 1823, revelou finalmente o nome da autora. A terceira edição, considerada a definitiva, data de 1931 e foi extensamente revista por Mary Shelley, incluindo um longo prefácio descrevendo a génese da história.
Numa noite especialmente chuvosa (que se prolongou por vários dias), Lord Byron desafia os convidados a escrever uma história de terror. É nessa altura que Mary – que acabara de perder um bebé – começa a esboçar a sua criatura.
Enquanto relato histórico dos primeiros anos de uma das mais emblemáticas figuras femininas da literatura, Mary Shelley tem um propósito audacioso. Mas o argumento de Emma Jensen transforma uma história com os ingredientes de drama biográfico pungente num vulgar melodrama de época. O guião negligencia a componente escandalosa da intelectual liberal do século XIX, parece demasiado comprometido com os limites da decência e evita mostrar com clareza o que o texto debate (a abolição filosófica do conceito de casamento, o hedonismo, a liberdade sexual) – e que possivelmente transformaria o filme num produto “maiores de 18”; a composição mais extravagante, de Tom Sturridge no papel dum Lord Byron (que mais parece um ícone glam-rock), é pouco mais que caricatural. O casting tão-pouco contribui para melhor resultado, apesar do elenco encabeçado por Elle Fanning (este ano pudemos vê-la em How to Talk to Girls at Parties, de John Cameron Mitchell e The Beguiled, de Sofia Coppola): a sua candura acaba por não ser convincente na figura de uma protagonista que merecia maior rasgo – problema que se estende ao companheiro de cena (Douglas Booth, no papel de Percy) e a uma evidente falta de química entre eles. Também a fotografia e guarda-roupa, demasiado polidos, afastam o relato das suas circunstâncias, embelezando o macabro, o carácter destrutivo da relação, a morte e a pobreza.
Embora impregnado de algum vigor feminista e se esforce por expor as dificuldades da autora a impor-se num mundo de homens, o filme peca ainda por negligenciar aspectos importantes do processo criativo e da personalidade da protagonista, apresentando-a como a escritora acidental, ou mesmo a escritora inevitável (dada a sua ascendência), alguém a quem a escrita acontece fruto da angústia e da adversidade, como se fosse mais veículo do que agente da sua arte: o guião explora o tema do abandono de forma directa (a morte da mãe, a morte do filho, a alienação do companheiro), dando-lhe um papel de exclusividade na elaboração da criatura solitária convertida num monstro pela ausência de afecto: Frankenstein. Depois do número de adaptações teatrais e cinematográficas dessa obra maior, é pena que Mary Shelly acabe por ser pouco mais que um filme convencional sobre uma figura histórica nada convencional, falhando em estar à altura da personalidade que celebra.