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Muvi Lisboa 2015 – Bastardos – Trajectos do Punk Português 1977-2014
Título Português: BASTARDOS – TRAJECTOS DO PUNK PORTUGUÊS (1977-2014) | Ano: 2015 | Duração: 72m | Género: Documentário de música
País: Portugal | Realizador: KISMIF | Elenco: Adolfo Luxúria Canibal, Zé Pedro, Francisco Dias, Miguel Newton

Houve muito para ver no Muvi Lisboa 2015, verificando-se que a oferta do festival era diversa e de qualidade, na generalidade. Prosseguiu-se para este retrato do punk nacional, Bastardos – Trajetos [sic] do punk português (1977-2014), um corolário audiovisual do projecto KISMIF (Keep It Simple, Make It Fast), de âmbito académico, cujo fito é o de documentar e explicar a história do punk português; tendo em conta de que a maioria do conteúdo está em português pós-Acordo (?) Ortográfico, não nos parece que seja um projecto que entenda a ontologia do punk e que este é inconformista e que rejeita dogmas e regras imbecis, como o são muitas do famigerado Acordo. Um ponto negativo e a rever, até porque não há qualquer disposição legal que obrigue aquele projecto a adoptar tais regras “ortográficas”. NadaDIY, muito menos punk e, sobretudo, sem qualquer sentido crítico, apenas um pseudo-legalismo bacoco.

Mas, diga-se em defesa da equipa, é um desafio muito ambicioso a que os autores se propuseram, com relevância e valor, mas que teria de ser levado a cabo com uma boa dose de rigor e de bom gosto. Veremos se assim foi.

Carregado de convidados de peso, que ajudam a ilustrar as várias épocas retratadas, Bastardos… parece bem encaminhado, mas revela logo algumas falhas e falta de percepção dos autores. Se a presença de Zé Pedro (dos Xutos e Pontapés) confere alguma legitimidade à obra, bem como alguma perspectiva sobre os primeiros tempos do punk neste País, a dada altura já não se justifica mais tempo daquele em cena; seria preferível ouvir gente como Deus Adolfo Luxúria Canibal (Mão Morta) ou Francisco Dias (Subcaos e Porcos Sujos, de Lisboa) mais tempo, do que Zé Pedro ou João Pedro Almendra. A eloquência dos primeiros é, ela própria, um documentário em si. Contudo, as entrevistas com membros de “cenas” locais, como Tiago André (MC Dolls, de Coimbra) ou membros do que acabaria por ser o Linda-a-Velha hardcore são um esforço válido no sentido de um documentário abrangente.

Como a coisa é sobre punk, de mencionar que Ondina Pires (Dansa do Som, Pop Dell’Arte, de Lisboa) e Tiago André estariam presentes em palco, enquanto participantes no concerto de Ian Svenonius na galeria Zé dos Bois, nessa mesma noite. Svenonius é o exemplo acabado de um punk que soube envelhecer e manter-se relevante, ao contrário de muitas vacas sagradas que insistem em andar de crista na meia-idade, repetindo ad nauseam os mesmos três acordes.

Numa primeira abordagem, o documentário está pejado de boas intenções, tentando ultrapassar todas as limitações técnicas de som e de imagem – que acabam por afectar toda a experiência, infelizmente. No que respeita à estrutura, a obra tem falhas: se tenta seguir uma linha minimamente coerente na fita do tempo, em termos geográficos perde-se e só quem conheça minimamente bem o punk e o hardcore nacionais é que poderá relacionar o tempo e o espaço relatados em “Bastardos”; a viagem é estonteante no mau sentido, com um encadeamento e edição atabalhoados. É salutar a tentativa de englobar todo o território nacional, já a execução deixou a desejar – bastariam uns planos informativos a separar as áreas e eras: casa ocupada de Lisboa; Coimbra; Porto; Lisboa nos anos oitenta, etc..

Como bem disse Deus Luxúria Canibal, o punk nacional nasceu com um vazio político ainda maior do que os congéneres de Londres e Nova Iorque – era, quando muito, um movimento de certa boémia e de opções estéticas num estilo incrivelmente “português suave”, como um alfinete num lábio aqui e ali, mas sem grande celeuma. Era tocar rápido e mandar às urtigas os pseudo-magos do rock progressivo (ainda que vários dos novos punks fossem fãs de prog-rock) e os equilibristas de sapatos de plataformas do glam rock.

O começo é o expectável: os Faíscas e Aqui d’El Rock, a dupla que deu o pontapé de saída ao fenómeno em Portugal, mais os relatos de concertos e festas aqui e ali, com um brinde: uma gravação inédita dos Faíscas na rádio, a única que se lhes conhece. Por falar em rádio, é certo que António Sérgio já não está entre nós, logo seria difícil entrevistá-lo, mas é tratado com demasiada ligeireza para quem foi, de certa maneira, o John Peel nacional.

Uma mensagem fulcral: se o 25 de Abril abriu (supostamente) o País em termos culturais e de direitos fundamentais, a primeira vaga do punk nacional reivindicou o direito à diferença, como um dos entrevistados, David Pontes (Cães Vadios, do Porto), postulou. Também o punk sofreu com a mediocridade absoluta da maioria da crítica nacional de então – dominada por ignorantes ou pela extrema-esquerda, não só não foi alvo de nenhum estímulo, como também acabou por ser menorizado pelo mesmo tipo de “gente” que até o rock progressivo do grande “10000 Anos…” de José Cid crucificou.

Se as histórias de Miguel Newton (Mata-Ratos), Manolo (Crise Total) e afins já são sobejamente conhecidas, seria interessante entrevistar participantes anónimos de então, aqueles que (como outra crítica ao documentário propôs) caíam de palcos, que esbarravam contra os outros num pit, que escreviam outras fanzines e que cresceram com o punk/hardcore.

No que respeita à parte regional, de destaque as histórias de Frágil (Renegados de Boliqueime, do Porto e Moncorvo), de Pedro Duarte (Cães Vadios), Nito Gonçalves (aqui muito sósia de Lucílio Baptista, dos É M’As Foice, de Coimbra) e Mário Campos, José Ataíde e Luís Pedro, os “moino-mutantes” dos Pé de Cabra, de Linda-a-Velha – são, quiçá, os testemunhos mais relevantes de “Bastardos…”, pois dão-nos o ponto de vista de sítios que não Lisboa e em várias épocas; o problema é mesmo o trabalho de edição a prejudicar o conjunto, novamente.

Em termos ideológicos, o punk e seus intervenientes revelam, de 1977 a 2014, um vazio e até certa ignorância (excepção: Deus), mercê de uma adesão demasiado precoce ou acrítica a ideias políticas. Pouca reflexão e debate enviesado e inquinado à partida por falta de pluralismo ditam certo raquitismo intelectual do punk português, seja à esquerda ou nas ditas “frentes de libertação animal”. Caíram num dogmatismo contrário ao punk.

Por seu turno, este enviesamento de ideias também se reflecte na incipiente evolução da maioria das bandas: pouco retiraram os nossos da obra mais vanguardista dos Clash, de uns Ruts, Flipper, Wire ou dos Talking Heads, preferindo-se os Sex Pistols, mas recusando-se os PiL. Parece que boa parte dos punks nacionais preferiu o caminho mais fácil, menos intelectual e mais monótono – excepção à regra: Coimbra, que contraria o atavismo de então da sua academia, através dos É M’As Foice e Tédio Boys ou de Deus Luxúria Canibal e seus projectos. Pouco ou nada se ter falado de bandas fulcrais como os Corpo Diplomático e Ku de Judas/Censurados também não beneficia Bastardos… – seria como falar dos Cinco Violinos e ignorar Peyroteo. A referência breve aos X-Acto e Sannyasin (sem uma palavra quanto ao falecido vocalista de ambas, Rodrigo Barradas) mal deixa entender que o conceito straight edge (do qual ainda somos parcialmente partidários) foi introduzido em Portugal.

E deixar de fora recintos históricos também não faz jus à história dos punks portugueses, até porque muitos deles – do Rock Rendez-Vous ao Ritz Clube – foram determinantes para o desenvolvimento de bandas e cenas locais no punk e hardcore de Portugal.

O envelhecimento dos nossos punks não foi gracioso, na maioria dos casos: ou andam, já na meia-idade, de boné virado para trás a virar o disco e a tocar o mesmo de há trinta anos, ou retiraram-se sem glória. Raros são aqueles que conseguem manter a receita com êxito e fulgor, como uns Mata-Ratos, ou que conseguem evoluir e manter-se relevantes, como os Mão Morta.

Para um documentário que provém de um projecto académico, de investigadores e de bolseiros (coordenado pelo actual Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva), o resultado é fraco e revela pouca ou nenhuma investigação: nem uma referência a bandas de culto e provavelmente as mais relevantes dos últimos quinze anos, como os Parkinsons, os Clockwork Boys (declaração de interesses: este escriba foi manager burlão destes) e os Vicious Five, não havendo, ainda, uma palavra sobre uns Killing Frost ou Mr. Miyagi, no hardcore. O facto de muitos se dizerem fãs de punk e citarem as suas referências musicais no sítio de Internet do projecto torna o facto ainda mais incompreensível.

Afirma-se aqui: o exemplo a seguir em matéria de investigação e documentação académica de culturas e sub-culturas mais ou menos jovens continua a ser o de Salomé Marivoet e os seus trabalhos sobre claques, nos anos oitenta e noventa. Um dos problemas de Bastardos… é que pretende ser um projecto com rigor académico com linguagem informal, mas falha no rigor e a linguagem não é particularmente atractiva.

Mesmo com as suas limitações materiais, Bastardos… poderia ter sido o documentário definitivo sobre o punk de Portugal; talvez demasiado ambicioso no seu escopo, teria sido melhor dividi-lo em partes, perfazendo uma série de obras. O punk português tem várias pérolas e diamantes, mas é uma loja de bijutaria que poderia ter sido uma Tiffany’s.

A maioria das bandas dos últimos dez/vinte anos e respectivas cenas não são memoráveis (para não dizer más) e caíram de maduras, pecando por uma repetição enjoativa de sonoridades, muitas vezes por falta de referências verdadeiramente interessantes que pudessem ampliar o espectro musical de todos – fãs e músicos. Fala-se muito, no documentário, em contrariar o seguidismo da sociedade, mas em termos musicais e políticos, o punk nacional (sobretudo o mais recente) não passa disso mesmo: de uma horda seguidista e preconceituosa, assemelhando-se às ovelhas brancas da capa de “Out of Step”, de Minor Threat. Muita conversa, mas quem ousa ser diferente é posto de parte pela “cena”, salvo honrosas excepções. O atavismo permanece quase incólume.

Em suma: vários testemunhos e ideias interessantes, mas um produto final que não almeja os objectivos a que se propõe, sendo até, de certa maneira, conformista e contrário ao adogmatismo do punk – desde as escolhas ortográficas até boa parte dos entrevistados e bandas mencionadas. Mais vale poupar o dinheiro público e mudar a equipa do que gastá-lo com um produto tão fraco e pouco certeiro como este – a gastá-lo, que seja com promotores que valham a pena e que tragam a música que interessa. Uma pena.


sobre o autor

José V. Raposo

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