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Filme em antestreia nacional no 25º Curtas Vila do Conde (2017)
Um dos maiores chavões que se lêem nos textos sobre cinema é de que os grandes realizadores, ou seja, os que encaram o cinema como uma expressão artística e não como puro entretenimento, estão sempre a fazer o mesmo filme. Acho que todos nós, que gostamos de ler sobre cinema, já nos deparámos com esse tipo de sentença.
O que não deixa de ser interessante é que os mesmos críticos que tantas vezes rebaixam filmes comerciais por não apresentarem nada de novo e por repetir ad nauseam fórmulas há muito estabelecidas, não sentirem qualquer tipo de incómodo quando um cineasta que considerem digno de atenção repetir, filme após filme, o mesmo tipo de fórmulas com que ele próprio decidiu delimitar a sua expressão artística. Claro que quando se diz que os grandes realizadores estão sempre a fazer o mesmo filme, o que está a querer dizer é que todos os filmes por ele realizados têm a sua marca autoral e um estilo que não pode ser confundido com o de nenhum outro realizador. E essa marca tanto pode ser devido à sua maneira de filmar, como ao tipo de histórias que aborda e às personagens que as habitam ou mesmo à ambiência que cria em cada um dos seus filmes. Um crítico de cinema (ou de literatura, música, teatro…) pode perdoar tudo num artista, menos o facto de ele não demonstrar características que o distingam dos restantes.
Se há realizador de cinema, na actualidade, que pode ser elogiado (ou acusado, conforme os pontos de vista) de estar sempre a fazer o mesmo filme é o finlandês Aki Kaurismäki. O que, segundo a lógica apresentada no parágrafo de cima, faz dele um grande realizador. Por isso, quem conhece a sua obra (e há duas décadas que os filmes de Kaurismäki estreiam sempre em Portugal, algo não acontece, certamente, só por ter casa em Viana do Castelo) já sabe o que o espera em O Outro Lado da Esperança: humor seco e impávido, diálogos lacónicos e interpretados quase sem emoção, situações dramáticas a conviverem com outras absurdas (mas que as personagens nunca encaram como tal) e detalhes anacrónicos – neste seu mais recente filme, por exemplo, são os carros dos anos 50 e as máquinas de escrever a conviverem alegremente, em pleno século XXI, com os computadores e telemóveis.
E, depois, há ainda o pormenor de Kaurismäki trabalhar com película e não com digital, até porque enquanto tal for possível, será sempre nesse suporte que o finlandês irá filmar. Se todas estas características vos cativarem, então podem ter a certeza de que as vossas expectativas não vão sair defraudadas. O Outro Lado da Esperança é Kaurismäki vintage e o Urso de Prata que recebeu no Festival de Cinema de Berlim a premiar a sua realização certifica isso mesmo.
Uma parte do filme é sobre um dos assuntos mais complexos e inescapáveis da actualidade: o destino de um refugiado sírio (Khaled), que foge da guerra em Aleppo e chega clandestinamente, a bordo de um cargueiro, a um país do qual pouco ou nada sabe, a Finlândia, onde o seu pedido de asilo é negado. Esse é o lado mais dramático do filme, que não se intimida em expor a burocracia estatal, bem como as ameaças xenófobas nas ruas, que um refugiado do Médio Oriente tem de enfrentar num país desenvolvido da Europa. Mas há uma outra história neste filme, mais ligeira e nonsense, passada na mesma cidade, Helsínquia. Essa outra história é sobre o percurso de um vendedor de camisas (Wikström) que, cansado do trabalho e da mulher alcoólica, decide mudar radicalmente de vida. Para tal, aposta todo o seu dinheiro numa partida de póquer e investe o montante ganho na compra e revitalização de um restaurante que se encontrava nas ruas da amargura.
Durante quase metade da projecção da fita é como se estivéssemos a assistir a dois filmes em simultâneo, pela diferença no tom que Kaurismäki imprime a cada uma das histórias. Mas, inevitavelmente, chega o momento em que as vidas de Khaled e Wikström se cruzam. E como é que decorre esse primeiro encontro? Como uma agressão mútua que deixa ambos a sangrar do nariz.
No entanto, e como isto é um filme de Kaurismäki, a cumplicidade entre os dois surge logo a seguir, até porque o empresário reconhece no refugiado a mesma vontade de começar uma nova vida e oferece-lhe um emprego no seu estabelecimento – para além de ajuda para encontrar a irmã, também refugiada na Europa e a única familiar de Khaled que se encontra viva, e documentação falsa, que lhe permita não ser detido pelas autoridades e enviado de volta para o seu país. E essa ajuda nem sequer é discutida com os restantes empregados do restaurante de Wikström porque, no universo de Kaurismäki, as acções (principalmente quando são motivadas pela cumplicidade entre as personagens) não se discutem. Noutro filme, poderiam ser pesados os prós e contras de se estar a infringir a lei e a colocar em causa o próprio negócio, mas para as personagens de Kaurismäki não há discussão possível quando se está a fazer a única coisa que, para elas, faz sentido.
A palavra humanista costuma ser utilizada com um sentido pejorativo na crítica de cinema, porque é quase sempre associada a filmes ingénuos e paternalistas, com boas intenções, mas pouco interesse artístico. O Outro Lado da Esperança, no entanto, é um filme humanista, mas isento de qualquer tipo de sentimentalismo. Mesmo Khaled, que nas mãos de outro realizador poderia ser retratado como uma figura sofredora, encara todos os obstáculos com que se depara como algo de quase natural. Claro que ele faz o que pode para se defender e garantir a sua permanência em Helsínquia, mas em nenhum momento, nem depois de sofrer agressões físicas, se nota qualquer tipo de revolta ou vitimização na sua expressão. Este tipo de interpretação fria e desapaixonada pode ser desconcertante para muitos espectadores, mas, no universo de Kaurismäki, ela faz todo o sentido e estranho seria ver uma personagem a destoar do tom que ele imprime a todos os seus filmes.