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O mundo dos sonhos conduz-nos através de uma insólita história de amor entre dois desajustados, num lugar estranho para reflexões existenciais e menos ainda para encontros românticos: Endre (Géza Morcsányi), director financeiro de um matadouro em Budapeste, é um homem solitário que há muito desistiu do amor, não apenas pela idade mas pela paralisia no braço esquerdo, nunca explicada; Mária (Alexandra Borbély), a nova supervisora de qualidade, debate-se com problemas de sociabilização profundos, disfarçados por comportamentos obsessivos e de um rigor profissional que suscitam a chacota dos colegas. Um incidente no matadouro impõe a necessidade de uma avaliação psicológica, durante a qual a psicóloga descobre algo extraordinário: Endre e Mária partilham – literalmente – o mesmo sonho. Todas as noites, são ambos cervos (ele, o macho, ela a fêmea) que se passeiam por uma floresta coberta de neve, em busca de água e de alimento. Falamos de On Body and Soul (Testről és lélekről), da cineasta húngara Ildikó Enyedi, vencedor do Urso de Ouro na 67.ª edição do Festival de Berlim e candidato da Hungria ao Óscar de melhor filme estrangeiro.
Num filme “simples e transparente como um copo de água”, Ildikó Enyedi desconstróis os cânones tradicionais do romance começando por utilizar um contraponto formal entre duas imagens discrepantes – a paisagem mental das personagens (o mundo doce e silencioso dos cervos) e as imagens brutais de abate do gado (bastante incómodas para estômagos fracos) – equiparando-as à oposição entre a alma e o corpo, intimidade e isolamento. Tudo o resto é jogado na dramaturgia e na direcção de actores. À primeira vista, a premissa poderia sugerir o domínio sobrenatural ou uma abordagem psicanalítica, mas a simplicidade da história e a natureza das personagens afastam qualquer inverosimilhança, legitimando o nascimento de uma paixão no universo alternativo dos sonhos: a ligação começa por existir no mundo onírico porque não tem condições para existir na vida real (não há lugar para interpretação dos sonhos, o seu significado é absolutamente directo). Endre e Mária parecem ter perdido o ímpeto de relação ou até a necessidade de afecto – excepto numa dimensão inconsciente, onde podem revelar desejos indizíveis, libertos não apenas da tensão do dia-a-dia mas das suas próprias limitações relacionais. Ao descobrirem que partilham o mesmo sonho, são impelidos a recriar essa conexão no mundo real, apesar de todas as dificuldades.
À primeira vista, a premissa poderia sugerir o domínio do sobrenatural ou uma abordagem psicanalítica, mas a simplicidade da história e a natureza das personagens afastam qualquer inverosimilhança.
Para além do argumento e dos contrastes fotográficos de Máté Herbai (o branco da neve vs. o vermelho do sangue), o grande triunfo do filme é o desempenho do casal protagonista. Ambas as personagens mostram escoriações afectivas evidentes, mas a dicotomia corpo/alma perpetua-se sobretudo através da personagem de Mária. Se inicialmente ela é quase um corpo sem alma, de comportamento estereotipado e memória hiperdesenvolvida (qualquer coisa no espectro do autismo), a situação acaba por exigir-lhe um percurso emocional mais penoso: a adaptação ao contacto humano, à sensação, ao toque e à intimidade. Mária e Endre aproximam-se na vida com a atitude dos seus avatares animais: primeiro o silêncio, depois o contacto visual fugidio, depois o abeiramento, só muito depois o primeiro toque. São animais que se transformam em pessoas. O único senão do filme é um certo desequilíbrio entre a personagem masculina e a feminina, tendo esta última muito mais por onde crescer. A composição gelada de Alexandra Borbély (que lhe valeu o galardão de melhor actriz europeia nos European Film Awards) provoca no espectador toda a gama de afectos que a personagem não tem.
Estamos perante um filme muito especial, que trabalha a história quase sem recorrer à palavra dita (já que a introversão das personagens não o permite), alternando o realismo cru do matadouro com belíssimas sequências silenciosas dos veados na floresta. O olhar delicado de Ildikó Enyedi nunca descarta a violência do contexto (a matança dos animais de olhos tão inexpressivos como os de Mária, o sangue a correr pelo chão, a frieza dos empregados do matadouro), mas serve-se dele para elevar o impacto da narrativa sonhada. Perto do fim, o filme liga sonho e realidade através da música (o magnífico What He Wrote, de Laura Marling), que invade o silêncio num rompante emocional até aí inexistente, numa cena de frieza tremenda. A comoção chega apenas a dez minutos do final, mas é o sentimento que fica. Pudesse o amor derrubar obstáculos corpóreos e imateriais, On Body and Soul tem uma mensagem essencialmente lírica, imperfeita, como todos os romances. Nas palavras de Ildikó Enyedi, “dizem que o amor é cego, eu acho que não, o amor aguça-nos a visão”.