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Wim Wenders é um realizador muito especial. Com grande foco em documentários, as suas obra são plenas de beleza e densidade; difíceis de digerir para muitos, pelo ritmo observador com que nos conta histórias. Wings of Desire (no original Der Himmel über Berlin) é um marco no cinema e na minha própria apreciação pessoal dessa arte. Como não há uma linha temporal quando se vêem filmes, a não ser a nossa própria cronologia, quando vi Paris Texas pela primeira vez, já havia visto Wings of Desire, apesar de o primeiro ser de 1984 e o segundo ser de 1987. E posso dizer que Paris Texas não me provocou esse deslumbramento que havia sentido com a magnífica história de anjos de Wenders. No entanto, diversas cenas voltavam-me repetidamente à memória e a banda-sonora era uma daquelas companhias imprescindíveis e recorrentes nas minhas listas de música.
Revi o filme recentemente com outros olhos, com outra calma, com outra apreciação. Os filmes de Wenders nao podem ser vistos assim às três pancadas, como quem vai ali só ver um filme entre o jantar e os copos com amigos. São filmes recheados de pormenores com cenas que tem de se estar com a disposição certa para conseguir absorver inteiramente. E foi com esse espírito que revisitei Paris Texas. Apetecia-me rever aquilo, apetecia-me ouvir aquelas palavras de Travis no ecrã e não como som de fundo da minha playlist.
O filme abre com uma das mais icónicas paisagens americanas: o deserto. O vermelho da terra funde-se com o encarnado do boné de Travis. Observamo-lo a beber água e até nós nos sentimos refrescados com aquela imagem. A imagética de Wenders para Paris Texas tem um toque de cor que penetra os olhos. Numa das cenas seguintes quando Travis entra no carro, temos a simbiose entre o vermelho, o azul e o verde! E todas estas imagens do cinematógrafo Robby Müller, ao som dos acordes de Ry Cooder, na que é uma das melhoras bandas-sonoras alguma vez feitas em cinema. Paris Texas arrecadou uma série de prémios em diversos festivais, nomeadamente em Cannes, e foi bastante aclamado aquando do lançamento, acabando por resistir ao maior juíz de todos: o tempo, que lhe consagrou um estatuto de culto.
Os carros têm e sempre tiveram um papel importante na história americana, talvez porque essa sociedade, sobretudo a rural, habita um espaço onde a extensão parece ser maior do que o infinito e o carro seja praticamente uma necessidade para se deslocarem, quase como se cada veículo fosse uma extensão de cada pessoa. A road trip, o drive in, são conceitos familiares a todos os que cresceram com o cinema. Muito familiares! A cena em que vemos os olhos de Travis pelo retrovisor do carro, no caso desta história única que Paris Texas nos traz, representa a memória e aquilo que se quer e não se pode deixar.
“Things are clearer up here”
Passaram-se quatro anos: e o que são quatro anos? Parece pouco numa vida, mas não se essa vida tiver o dobro desse tempo. O que são quatro anos nos laços de família? Nos sentimentos de irmãos e de pais e de filhos? Essa é a premissa deste filme: o regresso após quatro anos de ausência, onde se testemunha o confronto com tudo o que Travis deixou para traz nessa viagem pela amnésia.
“I am not afraid of heights, I’m afraid of falling”
Paris Texas está recheado de excelentes interpretações. E o que é um filme se os actores não nos transportarem consigo a cada gesto para outras dimensões? Já dizia Shakeaspeare: “Os actores são feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos.” Aquela lágrima que aparece no canto e teima em não rolar pelo rosto, insiste em não abandonar o conforto da origem, é a imagem perfeita de tudo o que personagem de Harry Dean Stanton não consegue expressar com palavras.
O filme aborda as nossas raízes, a origem, a pergunta última do ser humano, aonde qualquer outra indubitavelmente acaba por levar: onde é que tudo começou? A inocência da infância é talvez o grande contraponto a essa busca incessante de significado e sentido:
“- What are you doing?
-Driving.
-Where to?
-Just driving.”
O jogo da imitação entre pai e filho representa a aproximação dessa leveza da inocência com toda a densidade que a memória carrega consigo. Wenders tem também uma maneira muito particular de filmar e, para além das cores, premeia-nos com shots belíssimos das suas personagens, como por exemplo, a imagem em que vemos os pés das pessoas debaixo da mesa, a imagem em que vemos as duas divisões (sala e escadas), a cena em que voltamos novamente à criança a ouvir a gravação com a cidade em pano de fundo do outro lado do vidro (julgo que esta cena terá inspirado Sofia Coppola para uma das icónicas cenas de Lost in Translation) e, claro, a imagem do encontro de vozes final, por entre o vidro mirone. Tudo isto são shots que ficam connosco. Aliás, a sequência no bar de alterne, é fantástica. É uma das melhores coisas que já se viu ou se fez em cinema. Os adereços de Jane: primeiro a camisola cor-de-rosa, depois o negro, encaixam perfeitamente nesta sequência e parecem beijar a câmara com a sua textura. “I just like to stay silent”. Jane é brilhantemente interpretada por Nastassja Kinski, que apesar de apenas aparecer na segunda parte do filme, conseguimos sentir a sua presença ao longo de toda a história, muito antes de nos deliciar no ecrã. O diálogo e o monólogo são bastante reveladores da natureza humana, de todos os sentimentos que nos atravessam e que é difícil exprimir por palavras: amor, loucura, desejo, ciúme, raiva. “Together they turned everything into kind of an adventure” E a voz de Travis prossegue: “They were always laughing at stupid things”. Quase que queremos fechar os olhos e escutar apenas aquela voz, tal como Jane. Tal como a gravação que foi magnificamente inserida na banda-sonora do filme. E, depois, temos a maneira como a câmara combina os dois planos: foca um, foca outro e é irrepreensível, é a razão última pela qual a sétima arte é capaz de nos levar numa viagem de forma e de emoções inexplicável. E justifica todo o culto em volta de Wenders, pois só alguém de enorme mestria poderia ter filmado uma cena assim.
“If you turn the lights off will you be able to see me?”
É sobre a simbiose e dicotomia entre feminino e masculino, sobre os laços de amor que nos marcam e que ficam, sobre a nossa relação connosco próprios, sobre o vazio e a coragem de o enfrentar, de o olhar nos olhos sem medo nem pudor. Sobre a ternura, sobre a fragilidade que trazemos cá dentro. Sobre o papel de ser mãe, de ser pai, de ser amante, sobre a capacidade de dar. E, sobre como essa capacidade parece estar sempre comprometida se não formos capazes de dar a nós próprios. É sobre perdão, sobre redenção. E, acima de tudo, sobre a lucidez de compreender e aceitar isso. Aquela lucidez de que fugimos no constante e incessante movimento que nos rodeia, consciência de que fugimos, sobretudo, quando depositamos no ser óbvio pelo seu laço de sangue a razão última.
“I couldn’t use him to fill up my emptiness”
É difícil encontrar títulos como este na história do cinema. Nós vamos desaparecer e Paris Texas vai continuar a brilhar com o seu ensaio sobre o vazio. Um filme sublime!