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Paterson
Título Português: Paterson | Ano: 2016 | Duração: 118m | Género: Drama
País: Alemanha, E.U.A., França | Realizador: Jim Jarmusch | Elenco: Adam Driver, Golshifteh Farahani, Barry Shabaka Henley, Cliff Smith

Muito já foi dito e escrito sobre o filme de Jim Jarmusch, permitam-nos, no entanto, algumas notas.

No centro de uma história que pouco narra encontramos Adam Driver no papel de Paterson (o actor afirma-se uma vez mais como um dos melhores profissionais todo-o-terreno da sua geração), um motorista de autocarro da cidade de Paterson, em New Jersey – cidade natal do poeta William Carlos Williams (1883-1963), autor de eleição do nosso anti-herói. A sinopse poderia terminar aqui, mas acrescente-se que Paterson é casado com a sonhadora Laura (a iraniana Golshifteh Farahani), uma mulher que parece inventar um novo projecto todos os dias. Entre os cupcakes, figurinos, jantares de qualidade duvidosa e rasgos musicais de Laura, há ainda lugar para cuidar de um antipático bulldog inglês chamado Marvin, que faz as delícias da dona mas tem para com um dono uma atitude passivo-agressiva. O dia-a-dia do casal segue ao ritmo de um relógio-de-cuco. Enquanto ela se dedica aos afazeres domésticos e artísticos, Paterson acorda sempre à mesma hora e segue para o trabalho pelo mesmo caminho. Nos parcos momentos livres, escrevinha poemas num pequeno caderno – na maioria das vezes, pensando em Laura – uma ocupação que ela acarinha, da mesma forma que ele incentiva as suas maluquices. No final do dia, volta para casa, encontra a sua musa envolvida no projecto artístico do momento, e depois do jantar leva Marvin a passear até ao bar do costume, onde conversa com o barman Doc (Barry Shabaka Henley) e com as figuras que por ali vão passando. É um exercício fantasioso da rotina, na maioria das vezes algo difícil e drenante da energia e da criatividade. Estamos portanto perante um show about nothing melancólico.

Encontramos em Paterson uma mistura de géneros que cruza o drama romântico, a comédia dramática e o filme-ensaio, como se Jarmusch tivesse pretendido despir a narrativa de um glamour que não seria difícil de encontrar (basta pensar no seu trabalho anterior, Only Lovers Left Alive) para frisar o seu carácter prosaico e depois lhe devolver a beleza – e a poesia. Há desde sempre no trabalho de Jarmusch um lirismo visual particular, aqui patente na fotografia de Frederick Elmes – que aproveita as belas paisagens e lhes sobrepõe poemas que escorregam como água pelo ecrã – e que em Paterson se dilata à palavra escrita. A estrutura do filme, dividindo-o com rigor pelos sete dias da semana, sublinha a repetição e a passagem do tempo mas também a tranquilidade e o recolhimento, estimulando a atenção ao detalhe. O silêncio, que se sobrepõe aos diálogos, à banda-sonora e à própria poesia dita, é talvez uma alegoria para a personagem de Paterson: Um homem calado e contemplativo, aparentemente imune ao peso do hábito e às banalidades da vida, cujo único capricho é a necessidade interior de escrever poesia, dom que não pretende exibir ao mundo.

É uma ideia romântica e largamente explorada, a de que a pulsão artística apenas pode nascer do isolamento e da mais profunda solidão. Não deixa no entanto de ser curioso que, na concepção de Jarmusch, esteja ausente o conceito de angústia existencial, em muitos textos referenciada como o mote que convoca o acto de criação (já Nietzsche nos dizia que é preciso muito caos interior para parir uma estrela que dança). Ao invés, encontramos em Paterson uma ausência quase total de sobressalto que mais remete para a beleza das pequenas coisas do que para a majestade dos grandes feitos. Mesmo a relação dos protagonistas (ele solene e introvertido, ela excêntrica e infantil), é claramente projectiva, para que apenas seja possível conhecer-lhe a aparência casual da felicidade quotidiana, escapando airosamente a especulações sobre o seu substrato. Desta forma, Jarmusch deita um olhar ao banal na fronteira da condescendência que, conseguindo não transpor essa linha ténue, propõe uma visão verdadeiramente poética da existência simples e do (direito ao) acto criativo enquanto movimento individual fundamental, independente do seu impacto ou da apreciação pública do seu valor. Procurando inspiração na simplicidade do que se tem e não na inquietação do que se nos escapa, a poesia humilde e despretensiosa de Paterson (os poemas, muito simples, são originais de Ron Padgetts) parece ser uma inversão idealizada de uma certa ideia de impulso artístico, porventura mais apaziguadora do que lugar-comum do sofrimento do autor, em eterna travessia do inverno do descontentamento. No belíssimo filme de Jarmusch, é esta a quimera que se demora.

 

When you’re a child you learn there are three dimensions
Height, width and depth
Like a shoebox
Then later you hear there’s a fourth dimension
Time
Hmm
Then some say there can be five, six, seven…I knock off work
Have a beer at the bar
I look down at the glass and feel glad.

(Paterson/ Ron Padgetts)


sobre o autor

Edite Queiroz

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