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No início da década de 80, em plena Guerra Fria, um consagrado galã de Hollywood provou ser muito mais do que uma cara ao serviço dos estúdios ao ter a ousadia de fazer um filme sobre um dos primeiros líderes comunistas americanos, autor do mais fiel relato da revolução bolchevique (obra na qual o filme se baseia): o jornalista John Reed. Considerando a época em que foi filmado, um tempo de consolidação da indústria cinematográfica americana caracterizado por uma certa timidez criativa, a produção de Reds é particularmente singular e apenas foi possível graças à tenacidade de Warren Beatty, que após 10 anos a convencer a Paramount dos seus propósitos (um verdadeiro feito, já que o orçamento inicial era um dos maiores de sempre para a época) assumiu o controlo total do projecto, escrevendo o argumento (em parceria com Trevor Griffiths), produzindo, realizando e interpretando ainda a personagem central – o papel da sua vida. Pode dizer-se que Beatty partilhou com o seu herói a atitude inquieta (de certa forma, revolucionária) que aqui viabilizou a produção de um filme, no mínimo improvável para o seu tempo.
John Silas Reed nasceu em Portland, Oregon em 1887, no seio de boas famílias, teve uma educação conservadora em Harvard e viveu no bairro boémio de Greenwich Village, rodeado de intelectuais, artistas e revolucionários, onde se tornou um jornalista de excelência, com aspirações políticas a artísticas. Reds acompanha a história de Reed a partir de 1915, apresentando-o desde logo como uma figura na frente do comboio da História: correspondente da revolução mexicana, cronista no jornal The Masses e simpatizante dos movimentos sindicais e grevistas dos trabalhadores americanos no início do século, primeiras escolas de organização do proletariado; o seu talento literário é desde cedo colocado ao serviço das causas operárias.
Mas Reds é bem mais do que um biopic sobre a curta e intensa vida de um militante de esquerda no país do capital. É uma narrativa cinematográfica lendária sobre a revolução russa vista pelos dos olhos de um americano que a viveu e de um outro que insistiu em preservar a sua memória na tela. Warren Beatty fez a opção sábia (do ponto de vista da receptividade do público) de transformar o filme num romance; a coluna vertebral da obra não se resume aos acontecimentos quentes que ocorreram em Petrogrado (aos quais o filme dedica apenas dezassete minutos), mas centra-se antes na vida de John Reed e na tumultuosa história de amor com Louise Bryant (Diane Keaton), uma intelectual feminista de esquerda, uma mulher à frente do seu tempo, defensora da igualdade sexual, dos direitos das mulheres e dos trabalhadores, também ela jornalista.
Com base nesta personagem riquíssima, um homem de inabalável compromisso com as várias dimensões da sua vida – os amigos, a mulher que amou, e sobretudo a incansável militância à qual se manteve fiel até ao fim da vida – Beatty documentou não só a revolução bolchevique ou a vida de John Reed, mas toda uma realidade de época, numa obra epopeica de mais de três horas. Reds é simultaneamente um drama sociopolítico e um romance, mas comporta um traço documental forte, apoiado em depoimentos de contemporâneos dos protagonistas (intelectuais, militares, escritores de várias cores políticas, entre eles o escritor Henry Miller), recolhidos a partir de 1972. Os idosos falam de John Reed e Louise, mas também de outras personalidades da altura, como o poeta e dramaturgo Eugene O’Neill (Jack Nicholson) que viria a receber o Nobel de Literatura de 1936, a feminista Emma Goldman (Maureen Stapleton) ou o escritor Max Eastman (Edward Herrmann). Beatty utiliza estes testemunhos como contraponto, já que por vezes a narração é ácida; os relatos, feitos de lembranças já difusas, contraditórios e nem sempre simpáticos, revelam o universo intelectual, político e cultural americano daquele tempo e traduzem a nostalgia de um momento de transição e de agitação social. Estes depoimentos dividem e enriquecem a narrativa, apresentando versões bifrontes dos acontecimentos e das personagens e inviabilizando a acusação fácil de “propagandista”; Jack Reed, como era conhecido entre os amigos, não é enaltecido, mas antes discutido e comentado: “Was that in 1913 or 17? I can’t remember now”. “Jack was a playboy”. “Louise was an exibicinist”. Muito curiosos os depoimentos sobre Louise e a sua relação com Eugene O’Neill, o terceiro vértice de um triângulo que entretanto se desenhou, na idade da libertação sexual e do “amor livre”. Jack Nicholson é inesquecível no seu retrato de O’Neill.
Quando Beatty abordou Diane Keaton (sua companheira na altura) para interpretar Louise Bryant, ela terá reagido cepticamente; e, segundo dizem, as filmagens praticamente arruinaram a relação dos dois actores. Essa (in)tensa parceria entre Beatty e Keaton é realmente palpável e traduz na perfeição a natureza complexa das personagens a que dão vida e cuja relação terá sido profundamente complicada, mas também simbiótica e apaixonada. Embora Louise seja por vezes apresentada como um obstáculo à obsessão política do companheiro – há momentos em que o filme caracteriza Jack como um homem encurralado entre a vida pessoal e os seus ideais – o facto é que Reed e Bryant foram bem mais do que amantes ou parceiros revolucionários. Foram camaradas. Viajaram juntos até à Rússia para cobrir os tumultos que antecederam a Revolução de Outubro, onde acabaram por ser participantes activos. De regresso aos Estados Unidos e inspirados pelos acontecimentos testemunhados, aguçaram a sua militância pelos direitos dos trabalhadores. Em 1919, num momento de divisão entre os primeiros comunistas dos EUA, Reed ajuda a fundar o partido comunista operário americano. Nesse mesmo ano, escreve o seu livro-reportagem, Os Dez Dias Que Abalaram o Mundo, um relato incontornável da revolução bolchevique, elogiado pelo próprio Lenine. A obra combina o jornalismo puro com o entusiasmo pelos acontecimentos revolucionários presenciados. Não se limita ao relato, antes posiciona-se de um dos lados da história (“há dias que valem por cem anos”), enaltecendo os valores de Outubro e o sonho de uma nova organização social e de trabalho, sem a interferência do capital e da exploração do homem pelo homem – um sonho que não se cumpriu. Reed regressa a Moscovo no ano seguinte para obter o reconhecimento do Komintern para o seu partido recém-criado, e é aqui que morre, vítima de tifo, com apenas 33 anos. Foi enterrado no Kremlin, com honras de herói.
Para além do argumento e das interpretações memoráveis, Reds é um filme impressionante em muitos outros aspectos, com destaque para a sempre belíssima fotografia de Vittorio Storaro, uma impecável montagem, figurinos e banda-sonora. E apesar da sua tonalidade rubra, obteve o reconhecimento da crítica e da Academia e permanece como um dos filmes mais nomeados na história dos Óscares, com 13 nomeações, 4 delas para Beatty (que assim igualou Orson Welles). Mas recebeu apenas 3 estatuetas, para melhor actriz secundária (Maureen Stapleton), para a fotografia (Vittorio Storaro) e para Warren Beatty na realização (terá sido a única ocasião em que as notas da Internacional invadiram a cerimónia de entrega dos galardões). Três décadas volvidas, Reds mantém-se como um dos relatos históricos mais interessantes e visualmente poderosos da história do cinema, apenas possível graças ao star power do seu realizador e à forma inteligente como Beatty o soube usar. O filme é um marco incontornável na narrativa épica e no romance histórico, mas também um documento indelével sobre um dos mais importantes acontecimentos políticos do séc. XX. Uma lição de história e de cinema.