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Estávamos em 2005 quando um furacão marcou, de forma definitiva, o cinema português mais recente. Chamava-se Alice, o drama avassalador de um pai à procura da filha desaparecida, marcado pelo frio gélido dos silêncios, pelo olhar alienado do protagonista e pela música de Bernardo Sassetti. O actor era Nuno Lopes e o realizador Marco Martins. Doze anos depois reencontram-se em São Jorge.
O filme tem sido apresentado como um dos primeiros filmes portugueses sobre o boxe. Mas, sejamos francos: o boxe é aqui secundaríssimo. Se pensarmos num dos filmes mais carismáticos do género, Touro Enraivecido, o boxe não é sequer aqui o meio para expressar os dilemas interiores de Jorge (Nuno Lopes), nem para expor algo mais vasto sobre a sociedade. Isso é feito, mas através de outra actividade da personagem.
Estamos no Portugal da crise financeira, nos anos da troika e Jorge é uma marioneta da austeridade que assolou o país. Desempregado, com um filho para criar e proveniente de uma família humilde que também atravessa o flagelo do desemprego, aceita um lugar de “funcionário” (ou colaborador, segundo a novilíngua da precariedade) numa sinistra empresa de cobrança de dívidas. Uma de muitas empresas que compraram aos bancos mal-parados e que, recorrendo a práticas de coacção para receber o dinheiro em falta, terão enriquecido à custa das desgraças alheias.
Marco Martins tem o mérito de colocar frente-a-frente, não no boxe mas na vida, vítimas contra vítimas. O absurdo da realidade: uma vítima dos anos negros da crise a ser responsável por coagir outras vítimas (umas mais que outras) a pagar. E cria esta história que não reduz as personagens e os actores a estereótipos. O destaque vai para o belíssimo desempenho de Nuno Lopes, premiado numa secção paralela do Festival de Veneza e que dá corpo a toda a revolta interior de Jorge. Mas também há personagens secundárias interessantes, como o pai, interpretado por José Raposo, com uma certa xenofobia subliminar ainda presente nas sociedades ocidentais contemporâneas.
Ao ver São Jorge, vem-nos à memória o magnífico filme francês A Lei do Mercado, estreado em Portugal no ano passado. Também ele abordava a crise e colocava, de uma forma um pouco diferente, vítimas contra vítimas. Pena que a obra de Marco Martins se perca na fase final, com uma cena de perseguição pouco convincente e um desfecho sem grande força, sem um definitivo e certeiro murro no estômago. Ainda assim, um drama social interessante, com um realismo e um foco que falta a muitos filmes portugueses do género.