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São muitos os livros, documentários e dramas que abordam o Holocausto e têm contribuído para a sua memória colectiva. O sentimento de incredibilidade e culpa que o tempo não consegue diminuir justifica ano após ano a investigação contínua do tema e as expressões artísticas que nele se debruçam. No cinema, depois dos incontornáveis Schindler’s List (Steven Spielber, 1993) ou La vita è bella (Roberto Benigni, 1997), trabalhos mais recentes trouxeram-nos as histórias focadas no agressor: relatos de expiação, do “conhecimento desinformado” dos alemães ou, na expressão de Hannah Arendt, da “banalidade do mal”. São disso exemplo o belíssimo The reader (Stephen Daldry, 2008) baseado na obra homónima do alemão Bernhard Schlink, ou mais recentemente Lore (2012), da australiana Cate Shortland. Estreado nas salas portuguesas na semana em que arrebata o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, o filme de estreia na longa-metragem do húngaro László Nemes regressa ao tema das vítimas numa perspectiva revolucionária.
A história é simples e centra-se numa única personagem: Em 1944, Saul Ausländer (Géza Röhrig), um judeu húngaro prisioneiro em Auschwitz-Bierkenau, é forçado a trabalhar como elemento dos Sonderkommando removendo os corpos das câmaras de gás. Um dia, um momento de consternação provocado pela imagem do cadáver de uma criança (decerto igual a tantos outros no seu dia-a-dia) induz uma mudança psicológica radical no protagonista. A partir daí, o seu comportamento passa ser guiado por uma obsessão quase autómata de garantir que aquele menino seja poupado do crematório ou da vala comum tenha um enterro digno e de acordo com os preceitos da sua fé. Essa obstinação dá-lhe o propósito que lhe tinha sido roubado.
Os mártires do Holocausto não foram só despojados da liberdade de religião e pensamento, mas da liberdade física, do trabalho, do amor, da sexualidade e das diferenças individuais. Todo um povo foi normalizado à luz da sua condição de raça impura, privado da sua individualidade e condenado a viver em condições bárbaras por um espaço de tempo incerto e curto – sentença porventura mais dura que a própria morte. Ao estudar uma massa desumanizada pelas circunstâncias, a História e a arte têm necessariamente negligenciado aspectos sem relevância aparente num contexto subjugado à iminência da morte. Aqui reside o grande trunfo de Filho de Saul: mantendo fora da moldura as atrocidades que esperamos ver, o filme recupera um desses processos vivenciais suprimidos – a questão do luto, processo humano necessário e fundamental (de preencher o vazio deixado por qualquer perda significativa) – num contexto cujas variáveis inviabilizam o normal processamento cognitivo das suas fases. Não pode dizer-se que Saul se fixe numa das fases do luto descritas na literatura, mas não há dúvida que estamos perante um luto patológico sui generis, com particularidades nunca antes analisadas.
Não temos praticamente acesso, excepto na orla do ecrã, a imagens claras do que acontece em volta, mas apenas a reflexos, corpos desfocados, chamas e cinzas, movimentos bruscos e sons (gritos, suspiros, passos). László Nemes foi criticado pela fixação na personagem em detrimento da envolvente, mas a subjectividade da câmara é categórica: nenhuma imagem directa poderia contar a história que aqui se conta. A confusão cénica em pano de fundo, que acentua mais ainda o desnorte do protagonista, é uma opção brilhante da realização. Nemes parte não apenas do poder imagético e da sugestão, mas do conhecimento prévio e detalhado que a História, o cinema e a literatura se encarregaram de produzir, tornando desnecessário mostrar o que está já implícito nas sombras, cores, movimentos e ruídos. A câmara, insistentemente focada na face do protagonista em longos planos-sequência, acompanha os seus trejeitos, os seus olhos baços, a raiva contida no seu corpo fragilizado e o móbil comportamental insano que lhe serve de salvação. Quase não há palavras, mesmo porque a comunicação é difícil naquele universo de muitas línguas e silêncios obrigatórios. A desgraça de Saul é simbólica: representa a de todos os judeus que morreram nos campos de concentração, tantos deles impossibilitados do acto humano de chorar os seus. É um desempenho gigante de Géza Röhrig (actor, poeta e estudioso do Holocausto, convertido ao judaísmo depois de uma visita a Auschwitz, nos tempos de estudante), inexplicavelmente pouco compensado nos certames.
Ao contrário de tantos outros filmes sobre o tema, Filho de Saul filma o terror do avesso, de dentro para fora, e é por isso tão acutilante – porque obriga o espectador a identificar-se com um drama individual e não com a tragédia de um povo. Não pretende ser um trabalho informativo (apesar de se assemelhar, no trabalho da câmara, a uma reportagem jornalística in loco) nem pretende perscrutar os aspectos sobejamente conhecidos da vida nos campos de extermínio. É antes um estudo, inteiramente novo, da psicologia individual da vítima do Holocausto – uma abordagem fatalmente acessória para os anais da História, mas uma experiência emocional com um impacto que tão cedo não se esquece.