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(Filme visionado no IndieLisboa 2019)
O cinema de Solveig Nordlund, realizadora sueca naturalizada em Portugal, tem mantido uma relação estreita com a literatura e seus autores. São exemplo disso os filmes sobre a vida e obra de António Lobo Antunes (o documentário Escrever, Escrever, Viver e mais tarde o filme A Morte de Carlos Gardel, baseado no livro homónimo), Marguerite Duras (o documentário biográfico com o seu nome), Richard Zimmler (O Espelho Lento) ou J.G. Ballard (J.G. Ballard: The Future Is Now e Aparelho Voador a Baixa Altitude). Surge agora mais um trabalho centrado numa figura literária. Narrado na primeira pessoa, Sou Autor do Meu Nome Mia Couto é um relato em que o autor nos apresenta o lugar das suas memórias – a cidade da Beira, em Moçambique – e nos conduz pelos caminhos da vida que acabaram por guiá-lo à literatura.
Com ligações ao Partido Comunista, o pai Fernando Couto parte para a Beira no início da década de 50 para escapar à perseguição e seguir a carreira de jornalista, editor e poeta, mandando buscar a mãe um pouco mais tarde, como era costume na época. Os três irmãos nascem já em Moçambique, terra a que chamaram casa. Apaixonado por gatos, Mia cedo escolhe o seu próprio nome, em homenagem aos muitos bichanos que passeavam na rua em frente à grande varanda da casa – uma janela para o mundo, “era a Internet da altura”. Pela janela contemplavam o duro retrato do colonialismo, da segregação, da guerra ali ao lado, do racismo. Em 1971, chegou a mudança para Lourenço Marques e os primeiros estudos em Medicina. O movimento estudantil era robusto, com ligações à Frelimo, causa que determina o abandono da faculdade e início da actividade como jornalista, que manteve após o 25 de Abril. As recordações de Moçambique cruzam a guerra colonial, a independência, o longo período de guerra civil, as dificuldades e a fome, o trabalho como jornalista, a militância na Frelimo, a paixão pela biologia e a chegada ao lugar da escrita.
Sou Autor do Meu Nome… mostra-nos um homem simples, que continua a recusar o estrelato e se passeia pelas ruas da Beira com a descontracção de quem pertence àquela terra, sem conseguir passar incólume às vicissitudes da sua fama internacional. Seguido pela câmara, é muitas vezes interpelado por gentes de todas as idades que o abordam para o abraçar, roubar selfies, e sobretudo contar histórias. Porque as pessoas pensam através de histórias, aqui “é quase impossível não ser escritor”. São histórias do fantástico, do mistério, de mortos que comandam os vivos, da natureza mutante. Histórias de gente que lhe pede que devolva em texto a polifonia das vidas, que fala ainda em muitas línguas e para quem a relação com as palavras é peculiar, fruto de uma condição histórica que as torna diversas, desviantes, adaptáveis. Com frequência, chegam-lhe palavras que não existem no dicionário embora lá façam falta. Por exemplo: improvisório – qualquer coisa provisória mas também improvisada.
Muitas serão as teses académicas que abordam a obra literária de Mia Couto (moçambicana? pós-colonialista?), será porventura uma das muitas situações em que correm os teóricos no encalço dos práticos, tentando explicar por meio de fórmulas criadas a essência do trabalho de um artista. Nenhuma delas poderá, porventura, explicar a escrita de Mia Couto com a transparência e simplicidade do auto-relato. O documentário de Nordlund, em estreia mundial no IndieLisboa 2019, é uma oportunidade para conhecer o universo pessoal e literário de Mia Couto através de um olhar guiado pelas cores quentes de Moçambique e do sotaque particular do protagonista, que observa a forma como a oralidade lhe invadiu a escrita e inflectiu as regras da gramática. Não há outra forma de contar as histórias das pessoas, e é essa, diz-nos ele, a grande tarefa de quem escreve. “Sou um transmissor de recados”. A incumbência de mero mensageiro atraca-o a um propósito humilde, que diz ser a razão da sua escrita: “a missão e o dever de contar aqueles que vivem na invisibilidade, tornar visível esses lados do mundo. O que as pessoas querem de um escritor não é que ele seja um ídolo, é que ele as traduza.”