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O regresso de Taxi Driver às salas de cinema, numa iniciativa da Medeia Filmes, surge por ocasião do 40º aniversário do filme mítico de Martin Scorsese que acompanha o quotidiano de um veterano da Guerra do Vietname que trabalha como motorista de táxi em Nova Iorque. O argumento de Paul Schrader, centrado na personagem de Travis Bickle (Rober De Niro), é um poderosíssimo conto existencial urbano, cujo protagonista é um homem psicologicamente instável, retrato simbólico do isolamento individual nas grandes metrópoles. À cópia digital restaurada juntam-se um novo cartaz e um novo trailer, criados especialmente para a efeméride. Este restauro, supervisionado por Scorsese e pelo director de fotografia Michael Chapman, tem a assinatura da Sony Pictures, e foi feito a partir do negativo original do filme.
Quinto filme de Scorsese, Taxi Driver é filmado num momento de viragem na história do cinema americano e de redefinição das suas estruturas clássicas, amplamente firmadas no controlo das produções pelos grandes estúdios (o studio system) e na inspecção das temáticas abordadas pelo código de censura vigente até finais da década de 60 (o código Hays) – regulamento que impunha restritivas regras à produção cinematográfica americana e estipulava, entre outros princípios, a proibição da produção de obras que pudessem ferir os princípios morais do espectador ou conduzir a um processo de identificação com o crime, o mal ou o pecado. Na América pós-Vietname, com o final da carreira dos realizadores da idade dourada de Hollywood (Billy Wilder, John Ford, Elia Kazan e Alfred Hitchock, para citar alguns exemplos) e a emergência de novas formas de cinema na Europa (o que conduzia à necessidade de captar o interesse do público americano), uma nova geração de realizadores – Polanski, Coppola, o próprio Scorsese – começa a destacar-se com obras focadas em temáticas cruas (a pobreza, a criminalidade, a violência), oferecendo o protagonismo aos anti-heróis e aplicando ao cinema uma dose de realismo que anteriormente não lhe era permitida. Taxi Driver é um dos mais representativos e aclamados exemplos dessa nova forma de expressão cinematográfica, que devolve aos realizadores o verdadeiro cunho autoral das obras que dirigem.
No caso de Taxi driver, a identificação não será tanto com a personagem de De Niro, mas antes com a realidade de uma alma solitária imersa na selva urbana – uma Nova Iorque nos antípodas do sonho americano, que hoje nos é ainda mais familiar. Detenhamo-nos aqui no espantoso trabalho de construção da personagem de Travis, fruto de um conseguido esforço de equipa (Scharder, De Niro e Scorsese): Com 26 anos e sofrendo de insónia crónica, Travis entretém-se nos cinemas porno durante o dia e trabalha como motorista de táxi à noite, ocupação que o coloca numa posição de observador passivo de uma dinâmica social pervertida – a decadente Nova Iorque nocturna, com a sua miséria, tráfico, prostituição e demais sinais de desapego e decadência – que rapidamente aprende a desprezar. Fisicamente franzino, a sua dimensão psicológica é dominada por pensamentos intrusivos acerca da sociedade corrompida que o envolve, provocando-lhe uma crescente agitação interna que determinará o seu comportamento subsequente. Emocionalmente, Travis percebe-se como um homem só – Loneliness has followed me my whole life. Everywhere. In bars, in cars, sidewalks, stores, everywhere. There’s no escape. I’m God’s lonely man. Os seus afectos são pobres, é incapaz de lidar com o sexo oposto, com o qual tem apenas um contacto idealizado. A sua repulsa pelo seu ambiente aumenta ao ser rejeitado por Betsy (Cybill Shepherd), uma funcionária do partido do candidato à presidência, a quem não consegue expressar os seus sentimentos. De seguida, cresce-lhe a revolta e a sede de justiça ao conhecer Iris (Jodie Foster), uma criança de 12 anos que se prostitui a mando de Sport (Harvey Keitel). Para além destes, a dimensão social da sua vida permanece depauperada, os seus contactos interpessoais são diminutos e superficiais. A procura, sem sucesso, de afecto e de estímulos que permitam dar sentido à sua existência confluem no ímpeto de expurgar as ruas da cidade da sua imundice: inicia-se um processo de deterioração mental que opera uma perigosa metamorfose no nosso protagonista. Travis sucumbe finalmente à sua tormenta interior e confusão de valores, produtos da sua natureza explosiva, porque maltratada e infeliz (embora possamos apenas imaginar o passado de Travis, Taxi Driver é também uma das primeiras obras a aflorar a forma como os Estados Unidos esqueceram os seus heróis da guerra após o Vietname) e converte-se num sociopata vingador, figura que encerra todas as contradições do seu espírito: a doçura, a desilusão, a bondade, o esquecimento, a violência; o herói e o anti-herói, em simultâneo.
É difícil acrescentar algo ao tanto que já foi dito acerca do desempenho antológico de Robert De Niro como Travis Bickle, o mais icónico papel da sua carreira. A famosíssima cena do monólogo ao espelho – Are you talkin’ to me? – fruto de um improviso do actor numa pausa de gravações, é não apenas brilhante, mas paradigmática da mente esquizóide de Travis. Segundo trabalho de parceria entre De Niro e Scorsese (depois de Mean Streets, 1973), Taxi Driver foi também a consolidação definitiva de uma dupla que marcaria o cinema nas décadas seguintes, com outros importantes clássicos como Raging Bull(1980), Godfellas (1990), Cape Fear (1991) ou Casino (1995). Importante é também destacar a participação de Cybill Shepherd, cuja personagem representa a pureza inocente no meio do caos e, sobretudo, de Jodie Foster, então com apenas 14 anos, num papel difícil e impressionante de uma prostituta-criança que já viu tudo na vida, que lhe valeu a primeira nomeação para os Óscares e a catapultou para a fama.
Através do notável trabalho de fotografia de Michael Chapman, Taxi Driver ilumina de forma ímpar o lado negro e sórdido de uma Nova Iorque marginal, misturando o negro da noite com o vermelho dos faróis dos carros e dos letreiros dos cafés e motéis baratos, esbatido pelos vapores que emanam dos respiradouros dos esgotos. A fotografia é, de resto, claramente inspirada na estética noir (da qual Chapman era grande admirador), sendo que vários outros aspectos do filme assinalam essa inspiração (o ambiente degradado, o submundo criminoso, a utilização da voz-off). Bernard Herrmann, conhecido pela sua profícua parceria com Hitchcock (em especial, pela banda sonora inesquecível de Psycho), foi o compositor responsável pela banda-sonora, tendo falecido apenas um dia após ter concluído o score. Neste magnífico trabalho, Herrmann elege para homenagear a cidade um género que lhe era pouco habitual (o jazz), onde as variações em torno do tema central se tornam, ao longo do filme, cada vez mais sombrias, criando um paralelo sonoro óbvio com a loucura crescente de Travis – que lentamente evolui até ao epílogo sangrento para atingir, por fim, alguma paz.
Mas o grande maestro foi, na realidade, Martin Scorsese. A sua direcção permitiu organizar e tirar o maior partido de cada uma das peças do puzzle – a cidade de Nova Iorque (cenário que continuou a explorar em obras posteriores), um argumento inspirado, uma banda-sonora perfeita, uma belíssima fotografia e um actor gigante – e transformá-las numa memorável obra de culto – Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1976 – que não apenas é um dos pontos mais altos da sua carreira, mas da própria história do cinema americano.