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Há meio século, os Beatles eram a banda mais popular do mundo – outras proeminentes havia, mas a Beatlemania era um fenómeno dominante. Mas, subitamente, resolveram deixar os concertos e fechar-se no estúdio, deixando para trás quatro anos de muito trabalho (e guinchos e histeria).
Ron Howard, esse canivete suíço dos realizadores mainstream norte-americanos (Apollo 13 e Frost/Nixon, etc.), debruçou-se sobre as digressões dos Beatles com este The Beatles: Eight Days a Week – tudo para uma série de documentários da Hulu. Com a ajuda da própria banda (incluindo Harrison e Lennon), de George Martin (saudoso) e Neil Aspinall (idem) e da táctica do chamamento de celebridades para credibilizar a coisa, o conjunto seria de imagens e testemunhos inéditos de uma fase que nem sempre foi bem documentada.
Como é apanágio de Howard, a cinematografia é imaculada, numa montagem admirável, que manterá um espectador previamente desinteressado devidamente atento à fita do tempo da banda. Ouvimos passos e conversa de camarim dos quatro de Liverpool, explodindo os decibéis (e a acne e as hormonas), em imagens de arquivo de um concerto em Manchester, algures em 1962/63.
Lamenta-se que a fase de Hamburgo mal esteja presente (tal como Pete Best e Stuart Sutcliffe) , tirando umas observações sobre os vícios da cidade. Um ápice até ao estrelato no Reino Unido: os horrendos guinchos das massas adolescentes a abafarem uma primeira fase desinteressante – convenhamos que até A Hard Day’s Night ou Help! eram mais uma banda branca de rhythm and blues, igual a tantas outras e a fazer versões piores do que as originais norte-americanas dos Little Richards desta vida. Brian Epstein pegou neles e sofisticou-os: fatos e penteados novos e uma atitude ainda mais irreverente. O bicho pegou, mesmo com as bacoradas de Lennon e McCartney nas entrevistas, com umas verdades pelo meio: “não somos cultura, somos uma gargalhada!”
A fase do rock de pitas (McCartney afirma sem rodeios que as primeiras canções e discos eram de puro divertimento e dirigidas a raparigas) rendeu-lhes a primeira e histórica digressão aos EUA, com relato de Neil Aspinall: o som terrível na maioria dos concertos, a revelação de quem foi a paciente zero na Beatlemania ianque e a hilariante/deprimente transmissão rádio do desembarque dos Beatles no JFK – “UM DELES ACENOU!” –, com direito a palhaçadas dos rapazes. Acertado comentário de Malcolm Gladwell: numa sociedade crescentemente dominada por adolescentes, seriam eles a ditar o rumo da década.
Com efeito, desde a morte de John F. Kennedy em 1963 até à eclosão do movimento dos Direitos Civis, seria uma década com um cunho político jovem forte – e os Beatles seriam cada vez mais parte dele. Exemplo? O concerto no Gator Bowl, na Flórida, em 64: a oposição à segregação racial valeu à historiadora afro-americana Kitty Oliver dar tudo num sector decente e não na porta dos fundos. Whoopi Goldberg revela que, para si, os Beatles transcenderam a raça, ao ponto de ir a um concerto no saudoso Shea Stadium com a mãe – daquelas surpresas que só as mães sabem fazer. E o som? Terrível, claro. A toada de Eight Days a Week é celebrativa, raramente grave e esse é um dos seus problemas – tal como no vetusto Let It Be.
Até aqui, os Beatles seguiram o trilho de Elvis: uns filmes ligeiros (melhores do que os daquele, contudo), muito cansaço por via dos concertos e do estúdio, clara evolução artística e o advento da droga, com as primeiras ganzas – as sequências de Help! tiveram o seu contributo. Sereno, George Harrison explica que a banda começou a viver separadamente a partir de 1965/66, deixando de ser um gang com penteado à tigela. A fita do tempo (bons gráficos) mostra-nos uma banda que continua a vender bem, mas que se vai fartando da estrada; provas disto são um incidente em Hamburgo (a estupidez reinava nos melómanos locais, como também se veria com os Clash, em 1980), a nega involuntária a Imelda Marcos (que lhes valeu a expulsão, sem nada nos bolsos, das Filipinas) e o desgaste de mais idas aos EUA e a estreia no Japão. Inauguraram os concertos de estádio, mas o declínio da Beatlemania nos EUA era uma realidade, muito ajudado pela polémica de John Lennon sobre Jesus Cristo (a estupidez no Bible Belt levaria a queimas de discos da banda) – mais violência num país que passou a década dominado por ela. A 29 de Agosto de 1966, num Candlestick Park não esgotado, casa de Mays e depois de Montana, dariam o último concerto da digressão, fechando uma era e abrindo outra.
A cronologia mostra-nos o que aí viria: o começo dos Beatles como banda fundamental, sucedendo-se os grandes álbuns de música a sério, com Tomorrow Never Knows no fundo. Pecha da obra é George Martin estar reduzido a um breve excurso por imagens de estúdio. Bilionésimo lamento: uma pena que Revolver, The Beatles, Sgt. Pepper’s… e afins nunca tenham sido tocados ao vivo. No terraço da Apple (a outra), a 30 de Janeiro de 1969, mostraram-se ao mundo pela última vez. Don’t Let Me Down? Nem por isso, salvo nunca terem tocado o melhor que compuseram e, no caso deste filme, uma visão excessivamente esterilizada da realidade, sem broncas, sem excessos e com a ideia de que os Beatles eram uns predestinados que mandavam piadinhas em entrevistas e que eram levados ao colo pelos políticos e eram recebidos em embaixadas do Reino Unido. Tecnicamente, é uma produção com tudo no sítio. Contudo, em matéria de conteúdo falta sumo a Eight Days a Week – demasiada felicidade, pouco dissenso. Uma prenda para quem for ao cinema, contudo: meia hora do concerto no Shea Stadium, com berraria abafada e a cores!
P.S. – O Ringo era e continua a ser o Beatle mais fixe. E o Let It Be que interessa é o dos Replacements.