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The Gold Rush
Título Português: A Quimera do Ouro | Ano: 1925 | Duração: 88m | Género: Comédia
País: EUA | Realizador: Charles Chaplin | Elenco: Charles Chaplin, Georgia Hale, Mack Swain e Tom Murray

Há várias razões que levam muitos amantes da sétima arte, mesmo aqueles que têm genuíno interesse pelos clássicos, a torcer o nariz ao cinema mudo (ou cinema surdo, como diria o compositor francês Michel Chion). A falta de som é, obviamente, uma das principais razões, mas associada a ela está a interpretação dos actores, que, por não poderem fazer ouvir a sua voz, exageravam muitas vezes as suas reacções na tela. Na altura, essa técnica fazia todo o sentido, mas hoje em dia, o dramatismo excessivo dessas interpretações acaba por descredibilizar as personagens.

Mas se é verdade que a evolução técnica do cinema retirou impacto a muitos filmes que foram elogiados no seu tempo, há também obras do período mudo que, mais de 90 anos depois de terem sido realizadas, mantêm a sua frescura e eficácia. E mantêm-na precisamente por causa das condicionantes com que foram criadas. Neste caso, estou a referir-me especificamente às comédias interpretadas nos anos 20 por nomes como Charles Chaplin, Buster Keaton e Harold Lloyd. Comédias em que, devido à falta de som, as piadas nasciam da destreza física dos seus intérpretes e da sua capacidade para, a partir de situações do quotidiano, criarem cenas desastradas, quase sempre implausíveis e frenéticas, mas muitíssimo bem elaboradas e montadas, e por isso mesmo delirantes. Ainda hoje, delirantes.

Se Harold Lloyd representava o jovem comum da classe média, de óculos e com ar inofensivo (hoje em dia dir-se-ia um nerd) que tinha de enfrentar a vida infernal das grandes cidades, e Buster Keaton era o comediante impassível que nunca mudava a expressão do rosto, mesmo que a sua personagem estivesse em perigo de vida (uma técnica muito arrojada no seu tempo, por contrastar completamente com o que era padrão), Chaplin era aquele que aparentava ter uma dimensão mais ambígua. Até pelo facto de ser um vagabundo que aparece sempre vestido de fato, como se o passado da sua personagem ocultasse um outro tipo de vida que não o de um ser eternamente errante. Na verdade, ao contrário do que acontecia nos filmes de Harold Lloyd e Buster Keaton, as comédias de Chaplin têm sempre momentos melodramáticos, que forçam o espectador a oscilar entre o riso e as lágrimas.

The Gold Rush é um dos maiores clássicos de Chaplin e aquele que o próprio considerava o seu preferido. Aliás, chegou mesmo a dizer que era o filme pelo qual gostava de ser recordado. Talvez por isso, em 1942, estreou uma nova versão da obra em cinema, com a sua voz-off a fazer a narração da história e a substituir os intertítulos característicos do cinema mudo. O argumento do filme é simples: durante o período da febre do ouro, o eterno vagabundo parte para o Alasca em busca de riqueza e enfrenta as maiores adversidades que a neve e a fome podem provocar.

No entanto, são as cenas antológicas que ocorrem durante esta aventura que tornam The Gold Rush numa obra tão memorável. A saber: a cena em que, devido à fome, Big Jim (o companheiro de viagem da personagem central) começa a ter alucinações no meio da cabana em que eles se protegem de uma intempérie, e imagina que o seu amigo se transformou numa galinha enorme; a cena verdadeiramente surreal em que o nosso herói, por falta de alternativas gastronómicas, come o seu próprio sapato, tratando os atacadores como se fossem esparguete, a sola como se fossem um bife, e os pregos os ossos deste; a dança dos pãezinhos que o eterno vagabundo faz, enquanto sonha que está com a sua amada Georgia e as amigas desta, na noite de fim de ano (uma cena que, em 1993, seria homenageada por Johnny Depp no filme Benny and Joon). Nalgumas exibições dos nos 20, os projeccionistas chegaram mesmo a parar a fita e a repetir esta parte, para alegria dos espectadores. Há ainda a cena da cabana a oscilar à beira do precipício e a dança entre Georgia e o nosso herói, em que este, para evitar que as suas calças estejam constantemente a cair, ata uma corda à volta delas para as segurar, sem se aperceber de que preso a essa corda está um cão que acabará por acompanhá-lo durante o resto da dança.

Há, no entanto, uma outra cena, que não costuma ser das mais recordadas do filme, mas que é a minha preferida. E é também um momento que traduz de forma exemplar o contraste de emoções que os filmes de Chaplin tantas vezes nos despertam. É a cena em que o eterno vagabundo convida Georgia para passar com ele a noite de fim de ano. Ela aceita, mas depois de se despedir e de sair da cabana onde ele vive, vai para junto das amigas que a esperam do lado de fora. Todas elas, incluindo Georgia, gozam com o convite que lhe foi feito, pois não levam a sério o nosso herói. Este, no entanto, ignora o que elas pensam verdadeiramente dele. Por isso, quando fica sozinho na sua cabana, crente de que o sentimento que tem por Georgia é recíproco, a sua alegria é tão grande que desata a pontapear uma mesa, a saltar e a fazer o pino em cima da cama, a pendurar-se no tecto sem receio de se ferir, com a energia de quem não pode controlar o corpo e as emoções que nele correm. Inevitavelmente, acaba por também destruir por completo uma almofada, sendo que as penas desta são filmadas a cair como flocos de neve no meio da cabana.

E nós, espectadores de todas épocas, enquanto rimos com a sua explosão de felicidade, sentimos também um nó na garganta por sabermos que é a felicidade de quem está iludido e irá, em breve, sofrer a humilhação de perceber o que a sua amada sente realmente por ele. No final desse momento eufórico e amargo, Georgia regressa por momentos à cabana, mas só para ir buscar a carteira, pois tinha-se esquecido de a levar. À sua frente, a destruição provocada pela alegria indomável de quem a ama.


sobre o autor

Luís António Coelho

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