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Desde que Tim Burton vagou a cadeira, Guillermo del Toro tem sobrado como o cineasta dos monstruosidades e criaturas fantásticas. O seu amor pelo disforme deu ao mundo cinema imagens icónicas como o Homem Pálido, com olhos cravados na palma das mãos, ou a transformação de um personagem de banda desenhada na realidade tridimensional de Ron Perlman com Hellboy. No entanto, esse fascínio sempre foi encarado como cinema menor pela maior parte da crítica, o que torna então surpreendente a maneira como o seu mais recente The shape of water se tem afirmado nesta temporada de prémios. Bem sei que este é mais um ano para sermos políticos nos Óscares, mas sendo apenas cinéfilos, rejubilemos com esta celebração do cinema de género nos maiores prémios do cinema norte-americano; se juntarmos Get Out, um filme de terror, isto é um sinal dos tempos.
E não é como se esta obra não se afirme politicamente: passada no início da década de 60, junta personagens postos de lado pela sua cor de pele, preferência sexual, deficiência física ou simplesmente por serem mulheres; e o que os une numa mesma missão é um monstro. O que torna o filme mais subtil é o artifício da fábula. Antes, há muitos séculos, fábulas e contos serviam para nos contar as verdades mais íntimas da vivência humana, os pecados e os defeitos de cada um e Del Toro usa o artifício mais antigo de todos para nos confrontar com um mundo actual que parece não distar assim tanto do desta década. A forma é mesmo a da água, que é o condutor universal por excelência, o elemento que nos liga a todos. No centro, Elisa Esposito trabalha numa instalação militar limpando o chão. Não consegue falar, mas ouve e dentro de si vive um mundo vibrante e cheio de cor e vivo, que gira em torno dela mesmo. É quando conhece uma espécie de tritão aprisionado e humilhado por gente do exército norte-americano que parte da sua vida faz sentido. O filme depende por completo de comprarmos este conceito: um ser humano e um monstro envolvem-se e apaixonam-se e têm contacto físico (a sexualidade é extremamente importante no filme e é uma afirmação de individualidade: nos primeiros dez minutos, isso fica logo bastante claro) e é-nos pedido, como pessoas liberais que somos, que aceitemos. Se não o fizermos, o filme não resulta. É uma proposta arrojada e Del Toro vende-a com a sensibilidade que só tem quem ama estas criaturas de verdade: filma o estranho monstro com uma graciosidade incrível que nunca esconde a sua selvajaria, com a atenção dada à emoção. É preciso entender, para efeitos da nota dada, que este é o meu tipo de filme – visualmente requintado, assumidamente fora da realidade e sem medo de sentir, ainda que não nos atire isso à cara. Sou um romântico não assumido, que posso fazer?
Mas é a actriz Sally Hawkins, uma Elisa que nos atira quase sempre uns ares de Amélie, que tudo decide com uma performance que é não apenas emocional, como divertida e um pilar de realidade na fantasia de Del Toro. Os melhores filmes do mexicano são aqueles que cruzam História e Fábula e embora reconheçamos esta fantasia americana que nos é apresentada, com Cadillacs, cafés com tartes e noites de família em redor da televisão, os olhos de Elisa parecem sempre filtrar esse mundo com as cores do realismo mágico: gotas de chuva que dançam à janela, um sono debaixo de água e mesmo uma sequência de fantasia que embora force um pouco a mão, é uma delícia. É ela o nosso bilhete para este mundo fantástico. História real e importante cruza-se com naturalidade com este tom de faz de conta e até mesmo o vilão (um Michael Shannon a ser odioso, preso naquilo que ele, e toda uma geração, acredita que é a verdadeira América: no fundo, o principal vilão do filme é essa concepção de que só pode haver uma maneira de atingir a felicidade que nos é imposta), mau como tudo, tem motivos compreensíveis. As sub-narrativas funcionam todas para a principal e adensam-na de forma fluída. O guião não é brilhante, mas é coeso e toma o seu tempo para atingir a emoção máxima num final digno das histórias que ouvíamos quando éramos crianças.
O projecto é todo de Del Toro, claro. A paleta é de cobalto e verde água, as luzes vêm sempre de cima e o filme abre com um dos planos do anos que por si só estabelece o tom do filme, introduz-nos tudo o que precisamos de saber sobre Elisa e estabelece o realizador como um dos grandes visualistas a trabalhar no cinema moderno. As inspirações são óbvias, mas a mais estranha, mas directa, o filme A bela e o monstro, de Jean Cocteau. A criatura de The shape of water deve-lhe muito e apegando-se de um certo saudosismo europeu (patente na excelente banda sonora de Alexandre Desplat) e no encantamento dos inícios de cinema. Todo o filme vive aliás fascinado pela sétima arte e o realizador defende claramente o escapismo para confrontar a realidade: Elisa vive por cima de um cinema e o seu vizinho, um artista frustrado com a vida, por ser velho e porque a sociedade lhe nega a liberdade de ser gay, refugia-se nas imagens em movimento. The shape of water é um recado e um poema, filmado por del Toro como se fosse uma criança crescida que descobre que os monstros são reais e os piores não são os deformados, mas aqueles iguais a nós.
O filme casa bem com o conto de fadas e obra-prima que é El laberinto del fauno e como este pinta a realidade fantástica como a alternativa que insiste em misturar-se com o peso do mundo e com o peso da intolerância e da violência. O filme é sobre compreensão e o que acontede quando esta não se alcança, sobre quem não vê o quadro maior, sobre a possibilidade de uma pessoa se afirmar sem medo como indivíduo. É também um teste para empedrenidos, que deverão verificar o seu coração caso não sintam nada no decorrer do filme. Incrível e monstruoso também é o facto de em três anos terem nascido no México três homens que viriam a mudariam todo o cinema mexicano e a trazer novas cores à imagem em movimento. Dois deles, Iñarritu e Cuáron, já foram premiados. Aquele que sobra, o mago dos mundos que são nossos sem neles vivermos, aquele que deu ao mundo os monstros que Doug Jones tão bem interpreta como acontece neste filme, está a ser celebrado este ano – e é um admirável mundo novo, tão belo, perigoso e vibrante quando aquele que Guillermo del Toro constrói em The shape of water.