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«Eu é um outro» (Rimbaud)
Qual é o maior sacrifício que uma pessoa pode fazer por outra? Penso não andar muito longe da verdade se responder que é morrer por ela, e isso acontece pela dimensão do amor ou lealdade que existe entre as duas. Mas… e quando uma pessoa morre, voluntariamente, para salvar alguém que durante toda a existência lhe inspirou apenas revolta e inveja, alguém que ela acha que lhe roubou a vida que ela própria deveria ter tido? Como se pode justificar esse gesto? E que nome lhe dar?
Toto le Héros é isso, uma história de revolta, inveja e, no fim, sacrifício e redenção entre duas personagens com vidas paralelas. Mas é também uma homenagem de Jaco Van Dormael ao cinema, à arte das imagens e da imaginação. É um filme com uma narrativa labiríntica, constantemente a vaguear entre o passado e o presente, mais do que isso, também nos sonhos da sua personagem central. E, no entanto, nunca deixa o espectador à deriva. Por mais complexa que seja a história, por mais pistas e hipóteses que nos sejam apresentadas sobre o significado das cenas, o filme está construído de uma maneira tão lúcida e coerente que nem seriam precisos diálogos para compreendermos o que se passa. A falta de linearidade da narrativa não é apenas uma estratégia para nos manter em suspense. Ela serve também para aprofundar a densidade da sua personagem principal e acentuar o seu carácter obsessivo.
O protagonista do filme é Thomas Van Hasebroeck, um velho que vive num lar, assombrado por memórias amargas e um desejo de vingança. A sua obsessão é matar Alfred Kant, o homem que ele considera ser o responsável pela vida frustrada que teve. Ao contrário de Alfred, descendente de uma família rica, empresário de sucesso e casado, Thomas é um solitário que nunca conseguiu alcançar aquilo que sonhou. Ao elaborar um meticuloso plano para se vingar, Thomas refere que «não será um crime», porque ele apenas irá recuperar a sua vida, que lhe foi roubada no dia em que ele e Alfred nasceram. Desde criança que ele acredita que ambos foram trocados na maternidade, devido a um incêndio, e que quem ficou a ganhar com essa troca foi o seu rival e vizinho. Na infância, essa troca servia-lhe para justificar a inveja que tinha de Alfred, mas também o seu amor pela própria irmã, Alice, sem sentir estar a transgredir o tabu do incesto. A ideia da troca é também uma desculpa que ele encontra para afastar a sua irmã de Alfred (igualmente apaixonado por Alice) que, desse modo, seria o verdadeiro irmão dela.
Alice simboliza, desde o início, a fantasia de Thomas. Ao contrário deste, a irmã é uma personagem segura de si e sem medo de desafiar qualquer autoridade. Exemplo disso é a ameaça que ela faz na igreja a uma estátua da Virgem: caso o seu pai não seja rapidamente encontrado, depois de ter desaparecido num desastre de avião, tanto essa escultura como Mr. Kant (pai de Alfred e responsável pela viagem de avião que provocou o desaparecimento do pai de Thomas e Alice) irão sofrer graves consequências. Esta cena é seguida de uma outra em que, pela primeira vez, Thomas (inspirado pela bravura da irmã) se imagina, no futuro, como um agente secreto («a quem toda a gente chamará Totó o Herói») capaz de salvar o pai de um imaginário gangue de mafiosos controlado por Mr. Kant. Esta figura vai acabar por invadir várias vezes a ficção verdadeira. Como, por exemplo, na sequência em que Alfred, já na idade adulta, e a sua mulher, Evelyne (uma personagem que parece a reencarnação de Alice), se encontram numa loja de roupa a comprar um vestido, e o agente secreto criado pela imaginação de Thomas aparece subitamente no mesmo plano.
O vestido amarelo comprado por Evelyne a pedido de Alfred, idêntico ao que a personagem Alice usava, é uma citação directa de Vertigo e enfatiza a ideia de Evelyne como uma «nova» Alice, ou a «mulher que viveu duas vezes», à semelhança de Kim Novak no clássico de Hitchcock. Quando Thomas, na idade adulta, vê Evelyne pela primeira vez, ele acredita realmente que está a observar a figura da sua irmã, morta alguns anos antes. Tanto no filme de Hitchcock como no de Van Dormael, as personagens masculinas estão obcecadas pela imagem dessas figuras femininas. Em Toto le Héros, a morte de Alice, para além de simbolizar o fim da infância de Thomas, significa também a sanção do amor proibido, porque é um amor incestuoso. Tal como a personagem interpretada por James Stewart, Thomas deseja que Evelyne seja Alice não só pelo fascínio que a sua aparência lhe provoca, mas também para se livrar dos remorsos de ter sido responsável pela sua morte. De facto, ela só pegou fogo à casa de Mr. Kant (onde viria a morrer) porque o irmão a desafiou a provar o seu amor por ele. No momento em que reencontram a figura que alimenta a sua obsessão, tanto Thomas como James Stewart abandonam o mundo real para se deixarem guiar pela imaginação.
A única personagem que nesta situação consegue ver a verdade é Célestin o irmão de Thomas que é portador de trissomia 21. Quando Thomas lhe pergunta se ele não acha Evelyne parecida com Alice, Célestin responde prontamente que não. Ao contrário de Thomas, ele vive sem qualquer obsessão, sem procurar uma imagem única que dê sentido à sua vida. Thomas fica apaziguado com a resposta do irmão, mas ao descobrir, mais tarde, que Evelyne é casada e, mais do que isso, que o marido dela é Alfred, ele volta a sentir-se ridicularizado pelo destino.
A imagem recorrente de Thomas deitado na cama do lar, de noite, a mexer-se de um lado para o outro, funciona como leitmotiv do filme e cita o clássico Intolerância. Se nesta obra de David Griffith, os quatro episódios históricos são interligados por uma mãe a embalar o berço da humanidade, no filme de Van Dormael o constante retorno àquela imagem inquieta de Thomas serve para unir as suas imagens da infância, idade adulta e mesmo as da imaginação. É de salientar que foi Alfred quem fez a primeira ameaça, ainda na infância. Quando Thomas vai ter com ele no dia de aniversário de ambos para lhe dizer que eles foram trocados na maternidade, Alfred agride-o e avisa que o matará se ele contar essa história a alguém.
A singularidade de Thomas reside no facto de toda a sua vida estar moldada a partir da vivência de outras personagens ligadas ao universo da literatura (há referências a obras de James Joyce, Mark Twain, Jorge Luis Borges, Verlaine) e, acima de tudo, do cinema. Por exemplo, na velhice, ele é fisicamente parecido com o professor Isak Borg (Victor Sjostrom) de Morangos Silvestres. Mas há outras semelhanças entre o filme de Ingmar Bergman e o de Van Dormael. Tanto Thomas como Isak são personagens insatisfeitas com as suas vidas. A relação conflituosa entre Thomas e a enfermeira do lar relembra os desentendimentos entre o professor Isak e a sua empregada doméstica. Tanto o filme de Bergman como o de Van Dormael apresentam uma contradição entre as ambições da personagem envelhecida e a condição submissa da sua realidade. Isak confessa que a personagem que mais amou na vida foi uma prima sua chamada Sarah, que acabou por se casar com o irmão dele. Ou seja, tal como Evelyne, esta Sarah é a esposa do «outro». E tal como Thomas, também Isak encontra mais tarde uma jovem que, para além de ser muito parecida com Sarah (no filme de Bergman, as duas são interpretadas pela actriz Bibi Andersson), tem o mesmo nome da mulher do seu irmão.
A construção do filme, para enfatizar a homenagem que faz à própria arte cinematográfica, não hesita em agregar os mais variados géneros, desde a comédia ao melodrama, passando pelo filme noir e pelo musical. O próprio título do filme (que refere não o nome de Thomas, mas o do agente secreto imaginado por ele) faz alusão a uma das figuras tragicómicas mais populares do cinema italiano dos anos 40 e 50. Mas também a famosa canção Boum, de Charles Trenet, presente nas memórias de maior felicidade na vida de Thomas, funde-se na lógica interna da obra. Já a partitura musical (composta por Pierre Van Dormael, irmão do realizador) vai buscar inspiração aos melodramas de Hollywood e associa-se à imagem idealista que a personagem central tem do pai. Este será sempre recordado por Thomas como um herói de guerra, aviador, músico e mágico que lhe proporcionou alguns dos momentos de maior alegria que viveu. O prenúncio da morte do pai é dado numa sequência em que os pequenos soldados de plástico de Thomas caem de um móvel durante um sonho deste, com o som de um avião como pano de fundo. Thomas acredita que o pai morreu em defesa de uma grande causa e para proteger a família, mas a verdade é bem diferente. A pedido de Mr. Kant, ele tinha partido para o estrangeiro com o intuito de trazer um produto para a inauguração do supermercado do pai de Alfred. Como o filme está organizado numa estrutura de analogias, cada vez que se menciona a morte de uma personagem, ouve-se o barulho de um avião a descolar, pois foi através do acidente do pai que Thomas descobriu pela primeira vez o que era a morte.
O final do filme acaba por revelar que as imagens do cadáver de rosto tapado, que a personagem central vai imaginando ao longo da narrativa, não são do seu rival Alfred, mas sim do próprio Thomas. Em vez de imaginar a morte de Alfred, Thomas estava no fundo a projectar a sua morte. Assim, fazem todo o sentido os raccords que o filme apresenta entre o cadáver retirado da fonte e o plano de Thomas a lavar o rosto, com o espelho a reflectir a sua imagem; o fecho da cobertura mortuária seguido de um plano da personagem principal a abotoar a camisa de dormir; ou o corpo nu de Thomas na cama com Evelyne intercalado de imagens que mostram o cadáver a ser limpo na morgue. Para toda a gente (excepto para o inspector da polícia e o próprio Alfred Kant), é Alfred que morre. Mas o riso de Thomas em voz off, mesmo depois de ter sido atingido com tiros que os assassinos pensavam estar a disparar sobre Alfred, indica que no final é ele que engana todos os outros, incluído o seu rival de sempre, ao morrer por ele, para o salvar de um gangue.
A voz-off de Thomas, já depois de estar morto, faz recordar o clássico Sunset Boulevard de Billy Wilder, uma obra também narrada em flashback por uma personagem que se encontra morta desde o início, com o corpo caído numa piscina depois de ter sido alvejado. Já a cena da cremação é inspirada na de Jules e Jim, um filme que também contém um triângulo amoroso. Porém, ao contrário deste filme de François Truffaut, e da própria convenção dos triângulos amorosos, as personagens do filme de Van Dormael são apresentadas na sua infância, idade adulta e velhice. Se na memória ou imaginação de Thomas, ele teria nascido numa maternidade em chamas, e se foi também num incêndio que Alice perdeu a vida, faz sentido, na lógica interna do filme, que, após morrer, ele seja cremado.
Se no final do filme, Thomas salva Alfred das ameaças do grupo de criminosos que o persegue, ele acaba também por se tornar definitivamente na personagem principal da sua vida. Até então, o filme tinha-o mostrado como uma figura incapaz de descobrir um sentido para a sua existência. Um dos excertos literários recitados em voz-off por Thomas é o famoso monólogo de Macbeth, em que a vida é descrita como um conto cheio de som e fúria que, no fim, não significa nada. Para além de reflectir a condição de Thomas, esta citação refere-se também ao próprio Alfred. No fundo, como Thomas descobre perto do fim – na altura em que se preparava para levar a cabo o seu plano de vingança e descobre ser incapaz de o fazer -, também Alfred teve uma vida repleta de ilusões frustradas e também ele perdeu a mulher que amava. Apesar de ter voltado a casar-se, ele confessa a Thomas que nunca sentiu pela segunda mulher o mesmo que sentia por Evelyne. E confessa também que, ao longo dos anos, sempre invejou o seu rival por pensar que este tinha muito mais liberdade do que ele e que fazia sempre o queria. Essa acaba por ser a revelação mais chocante que Thomas tem na sua existência, mas também o momento decisivo para o volte-face final.
Tanto Alfred como Thomas são personagens cujos papéis se confundem: nasceram no mesmo dia, amam obsessivamente a mesma imagem feminina (e a que eles crêem ser a dupla dela), ignorando a inveja que cada um sente pelo outro. Quando Thomas vê na televisão a notícia de que o famoso empresário Alfred Kant foi alvo de um atentado e que, apesar de ter escapado ileso, se refugiou num lugar desconhecido, ele sabe exactamente que lugar é esse. Os criminosos que perseguem aquele empresário procuram-no na sua mansão. Só Thomas sabe que Alfred se refugiou na casa onde passou a sua infância, reconstruída depois do incêndio onde Alice perdeu a vida. Ao morrer por Alfred, Thomas está também a assegurar que este continuará a existência que ele (Thomas) deixou para trás.
O drama de Thomas é também o drama de Alfred. Eles são irmãos do mesmo infortúnio e das mesmas frustrações. A narrativa do filme pode não ter qualquer significado (à semelhança do que diz Macbeth no seu monólogo), mas nunca deixa de se explicar a si mesma. Thomas é uma personagem cuja existência reflecte características ou incidentes de outras personagens ficcionais, mas é também uma personagem com um duplo que o acompanha desde o dia em que nasceu, a sentir a mesma inveja e revolta que ele e a amar a mesma mulher. Assim, a famosa declaração de Rimbaud («Eu é um outro») pode aplicar-se perfeitamente a este filme de Van Dormael, sendo apenas necessário acrescentar um novo elemento para a completar: «e o outro sou eu».