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T2 Trainspotting
Título Português: T2: Trainspotting | Ano: 2017 | Duração: 117m | Género: Drama
País: Reino Unido | Realizador: Danny Boyle | Elenco: Ewan McGregor, Johnny Lee Miller, Ewen Bremner, Robert Carlyle, Anjela Nedyalkova, Kelly McDonald, Shirley Henderson

Trainspotting, de Danny Boyle, faz parte de um grupo de três ou quatro filmes que marcaram a cinefilia da minha geração e são património cultural que os trintões e quarentões colocam na casa do sagrado. Mexer nele é arriscar a nossa raiva e desconfiança, mas parte de nós, no mais secreto dos locais, queria saber o que se passou com Renton, Sick Boy, Spud e Begbie vinte anos depois. No início de século, o escritor Irvine Welsh, autor do livro original que deu origem ao filme, deu a resposta, mas Boyle nunca ficou contente com a mesma.

No início de 2017, e depois de muita espera e das pazes entre o realizador e o actor principal Ewan McGregor, estreou finalmente a sequela T2 Trainspotting, que não tem a mão de Cameron, mas cumpre a promessa de Schwarzenegger: I’ll be back.

 

 

Sem revelar muito, a sequela daquele que ainda é, apesar dos Óscares de uma certa viagem pela Índia, a melhor e mais famosa obra de Danny Boyle, regressa-nos aos quatro principais personagens do filme original e aquilo em que as suas vidas se tornaram depois da traição de Renton no final do primeiro filme.

Pode-se dizer que pouco mudou naquilo que é a base de cada um: Spud é um falhanço, Begbie continua psicótico, Sick Boy com uma bússola moral magnetizada ao máximo e Renton incapaz de escolher o que o tornou num ícone: a vida.

O filme volta a envolver esquemas para ganhar dinheiro e droga, traições e correrias. Mas enquanto que o original se alimenta da vertigem da juventude, da adrenalina do próximo chuto e de uma certa degradação urbana que o tornaram, também, no panfleto de tudo aquilo que estava errado com a Escócia citadina da década de 90, este T2 Trainspotting é um exercício de nostalgia, uma reflexão sobre oportunidade perdidas e sobre a crise da meia-idade.

Surpreende ao início, quando nos lembramos precisamente da vibração e energia que o original possuía, mas depois torna-se óbvio que uma sequela nunca funcionaria de outra maneira. A aparência de cada um não mudou muito, mas a passagem dos anos é importante e cada ruga conta, cada inflexão um arrependimento, e o filme funciona muito bem como um pequeno drama entre amigos, acerca do que é importante de facto na vida, sobre a maneira como a passagem do tempo nos faz reavaliar o que é realmente importante.

 

 

Em certa medida, este segundo filme pede precisamente aos personagens que escolham a vida, mas aqui, naquilo que esta tem, de facto, de valor. Pode ser estranho ao início, mas para um grupo de amigos que usava a droga para se adormecer e fugir da realidade, vinte anos são o suficiente para finalmente se confrontarem com o seu maior inimigo. É isto que dá charme a T2 Trainspotting, que o torna relevante e que faz ressoar em todos aqueles que cresceram com o primeiro filme um ligeiro desconforto, ao concluir que tal como Renton e seus comparsas, também o tempo passou por nós e as escolhas que fizemos determinaram-nos. É uma sensação estranha de comunhão, apropriada, mas também desconfortável.

Apesar de nalguns momentos arriscar por floreados estilísticos dispensáveis (algo que, infelizmente, tem marcado algumas das suas últimas obras), Danny Boyle reencontra aqui uma nova energia e inspiração, principalmente quando troca o frenesim da montagem pelas pausas da melancolia e numa admiração pelas paisagens escocesas que, embora poucos recordem, faz parte também do encanto de Trainspotting. Dois ou três planos fazem mais pela sensação de peso da culpa e do arrependimento do que a escolha daquela canção ou a vertigem daquele raccord, e é nesses momentos em que Boyle deixa os actores serem parte do cenário, que lhes permite momentos de lucidez e de conflito, que o filme brilha.

 

 

Uma cena em particular envolvendo Begbie e Spud é uma montanha-russa incrível de emoções e revela complexidades em ambos que nunca haviam ficado aparentes no passado e nessas pequena revelações, quando traz algo de novo à mesa. Boyle e o argumentista John Hodge (que faz um trabalho muito bom) passam por cima da camada de recordação que levou muitos fãs ao cinema e os recolocam num novo filme e cenário. Há momentos de homenagem (citações a David Bowie e ao icónico tema de Iggy Pop, à corrida de Renton e à pior casa de banho da Escócia, as aparições curtas de outros personagens do original), mas é nas novidades que o filme ganha vida e justifica a sua existência e independência e passa, assim o medo de que isto seria mais uma tentativa de nos ir ao bolso num banho sem vergonha de saudade.

Os actores voltam a vestir o papel de ícones sem iconografia exagerada e, embora o arco de Spud pareça às vezes correr lateralmente a todos os outros, há espaço para todos numa história que celebra o legado e ainda assim nos traz a reconciliação com o que o futuro nos pode trazer, de que pode nunca ser tarde para qualquer coisa de significante e se pode ser viciado em muita coisa.

T2 Trainspotting continua a mostrar que todos somos drogados, de uma maneira ou de outra, que existe em nós a pulsão da fuga através do refúgio numa qualquer droga e que a Edimburgo de 1996 e a de 2017 é o mundo, que a heroína é simplesmente uma redoma e, que no fundo, tal como estes quatro, todos temos medo de viver, em vários graus.

 

 

Danny Boyle volta a desafiar-nos a ter coragem e escolher a vida. Escolher o ar livre e o contacto humano, agarrar as oportunidades e ser atropelado, inventar esquemas e vivê-los com amigos, recordar sem nunca ficar preso, pensar no que podia ter sido sem nunca negar o que pode ser, de sair daqui de vez em quando mas com corda presa com a certeza do regresso, escolher o ar livre mas a morrinha da televisão durante horas também, de trair os teus amigos sem perdê-los, de ignorar as desconfianças e entrar na sala para ver uma sequela que em certa medida nem o é: abre-se à porta, espreita-se para ver o que mudou e vai-se a ver e nem mudou muito.

Escolher a vida pode nem ser a escolha da mudança: simplesmente reavaliar o que existe e jogar com cartas novas. Foi o que Boyle fez com T2 Trainspotting e tem trunfos suficientes na mão para dar o jogo por ganho.


sobre o autor

Bruno Ricardo

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