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Uma Luta Desigual (“ON THE BASIS OF SEX”)
Título Português: Uma Luta Desigual | Ano: 2019 | Duração: 120m | Género: Drama
País: USA | Realizador: Mimi Leder | Elenco: Felicity Jones; Armie Hammer; Justin Theroux; Kathy Bates

O título em inglês é tudo. E a tradução para português não lhe faz justiça, mas também não é despropositado, sendo o cartaz mais interessante: Felicity Jones (“Like Crazy”, “Breath In”, “Rogue One”) olha-nos de frente e com o queixo ligeiramente levantado no meio de vários homens (ou fatos) que, de costas, parecem andar em direcção oposta à sua.

É assim que se sai do filme: queixo levantado, olhar triunfante e aquela sensação de que seremos capazes de tomar o que vier na nossa direcção. À semelhança (com as devidas diferenças) do que tantos disseram ter sentido depois de terem visto Wonderwoman e Black Panther, há pouco mais de um ano.

Isto acontece e é especialmente importante e, de certo modo, sintoma da opressão que certas camadas da população sofreram e sofrem. E o filme não se poupa em proporcionar-nos momentos de incredulidade face ao juízo de descaramento que certas observações hoje nos suscitam, a par da naturalidade com que eram tecidas.

Pessoalmente, foi o que mais me tocou: sublinhar o que hoje é óbvio e evitado, mas tantas vezes negado e branqueado, evidenciando as pequenas e lentas mutações de cada uma das suas manifestações.

Durante quase todo o filme, o olhar de Felicity Jones é muito diferente daquele com que nos olha no poster: na pele de Ruth Bader Ginsburg (RBG), no período durante o qual foi uma das primeiras mulheres aceites em Harvard e até ser a segunda mulher nomeada e confirmada juíza do Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América, Felicity carrega uma expressão facial que será difícil não reconhecer como exprimindo a angústia que se sente quando, nem que por segundos, ponderamos a hipótese de uma ideia que pretendíamos construtiva, responsável, razoável, estar errada, ser despropositada ou extemporânea em face da sua rejeição (#gaslighting). Não que não existam ideias de facto erradas, despropositadas ou extemporâneas, mas este fenómeno de sistemática contemplação da nossa “invalidação” é transversal à condição feminina e tem paralelo, por exemplo, na culpa católica, tendo como efeito o silêncio e a auto-anulação. A isto chama-se opressão.

O filme merece ainda destaque pela utilização de figuras masculinas como aliados/suporte necessário para resistir e eventualmente superar este contexto de reiterada inferiorização, mas também para a vida em geral. Martin Ginsburg (interpretado por Armie Hammer, no papel da nossa vida, se tal era possível imaginar depois de Call me By Your Name), marido de RBG, toma conta dos filhos do casal, da cozinha, e encoraja Ruth, para que esta possa estudar, estar presente em eventos, procurar emprego, o que seja. Do mesmo modo que Ruth está ao lado do marido quando ele está doente, lhe redige os trabalhos enquanto está de cama, muda de cidade e termina o curso em Universidade diferente para que se mantenham juntos e o mesmo possa aceitar uma oportunidade de trabalho, estando cada um tão investido na carreira do outro como na sua e enfrentando também Martin algum modo descriminação social por isso.

Os grandes trunfos do filme consistem no facto de não deixar de explicar o outro lado da moeda, ou seja, as limitações e expectativas que os estereótipos de género colocam também sobre os elementos do sexo masculino e, adicionalmente, abordar questões geracionais, essenciais para a identificação do correspondente progresso civilizacional e, em particular, jurídico.

A relação que RBG teve com a mãe e depois a que desenvolve com a própria filha Jane e mesmo com os alunos, reflete a importância dos exemplos e referências na vida dos mais jovens e da aceitação de uma ideia de eterna renovação na vida dos mais velhos. RBG viveu num tempo em que a ideia de igualdade implicava a subjugação ao padrão masculino (de que a própria acaba por ser de certa forma reflexo, mas que constantemente questiona, considerando insuficiente), mas a sua filha já vive uma realidade em que essa subjugação é identificada e condenada. RBG não perpetua as suas frustrações ou as injustiças de que foi alvo, fugindo do antagonismo geracional para antes contribuir positivamente para a aceitação e consolidação de evoluções sociais desejáveis/necessárias.

A dada altura no filme é lida uma citação que aqui traduzo livremente: a lei nunca está completa; deve ser modificada, não com o capricho do dia, mas com o espírito da época. Nos Estados Unidos, o papel do juiz é preponderante, uma vez que a legalidade é ditada pelos precedentes criados com as suas decisões.

Em Portugal, este filme é essencial numa altura em que parte da população parece empenhada em manter-se em negação quanto às formas de descriminação dos seus membros e os tribunais portugueses perdidos no tempo, conforme aliás tem denunciado Tereza Pizarro Beleza em diversos escritos, alguns dos quais se encontram disponíveis online e de entre os quais retiro o seguinte excerto (da apresentação da disciplina de Direito das Mulheres e da Igualdade Social da FNUL, de 2008):

…a Constituição da República proíbe, no art.º 13.º, o tratamento desigual entre pessoas, exemplificando fundamentos ilegítimos de distinção. Em outras disposições, a CRP ordena ao Estado que promova activamente a igualdade entre pessoas, abrangendo actividades do que é vulgarmente referido como “discriminação positiva” ou “acções afirmativas”. O papel do Direito neste contexto é historicamente ambíguo e até contraditório. Por um lado, a Lei, a Jurisprudência, a Doutrina podem funcionar como instâncias de diferenciação e discriminação, reforçando ou legitimando desigualdades socialmente sancionadas. Foi esse claramente o papel da legislação da família no Código Civil de 1966. Mas o ideal igualitário pode também ser activamente promovido através do Direito, que assim actua de forma correctiva e pedagógica. (…) Mas o que me parece mais interessante numa perspectiva de “género” (relações sociais de género) é a possibilidade de observar a forma como o Direito estabeleceu historicamente e aceita ainda, de várias maneiras, conceitos normativos de mulher/homem/relações-apropriadas-entre-homens-e-mulheres, criando, fabricando, produzindo hierarquias de poder e subordinação que estão longe de ser mera reprodução do socialmente pré-existente. As regras jurídicas e as práticas que as sustentam, corroboram ou contestam têm uma origem e um efeito autónomos das relações sociais de que podem parecer um mero espelho. Mas é bom lembrar que os espelhos, além de reflectir, também distorcem e até incendeiam.”

Podemos viver sob diferentes sistemas juridicos e judiciais, mas o caminho trilhado e a trilhar é-nos familiar. E torna-se difícil, quando perante uma defensora da nossa condição e dos direitos que almejamos ou de que já gozamos, não sentir qualquer espécie de gratidão.


sobre o autor

Ines Cisneiros

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