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Um dos filmes mais aguardados do ano, Variações é já um recordista de bilheteiras. Já o era antes de o ser. Poucas figuras da música portuguesa serão tão queridas do público ou despertarão tanta saudade. Depois 35 anos sem António Joaquim Rodrigues Ribeiro, quem não gostaria de rever o cantor, o barbeiro, ícone da Lisboa do final dos anos 70?
Desenvolvido ao longo de quase duas décadas, Variações fala de António com uma atenção quase exclusiva na sua figura e personalidade, apresentando-o de forma tão calorosa que quase questionamos se, de facto, poderia existir um homem assim: simples apesar de toda a excentricidade, sonhador obstinado, autodidacta incansável, amigo leal. O amor à música, esse, todos lhe reconhecemos, está plasmado nos resultados da sua curta carreira (dois álbuns apenas), subitamente interrompida pela sua morte em 1984. É quase possível matar a saudade olhando para Sérgio Praia, que para além das semelhanças físicas, nos oferece uma interpretação de corpo e alma: A atitude, o olhar, a fisicalidade, os trejeitos vocais, os movimentos característicos, a energia e o entusiasmo de cantar – e, claro, a Amália na voz. A transformação de Sérgio Praia é quase perfeita e inesquecível.
Mas nem apenas de António se faz Variações. A caracterização, as indumentárias, a mise-en-scène fazem-nos viajar no tempo de forma imediata e sentimo-nos com ele, nessa Lisboa já tão distante: na casa excentricamente decorada onde vivia, compunha e poucos entraram, nas ruas da cidade por onde andava sempre a pé, no seu barbeiro, no frenesim da discoteca Trumps onde actuou ao vivo pela primeira vez.
Naturalmente, há falhas. O material é imenso e diverso, há vontade de mostrar tudo e não deixar escapar nenhum detalhe. Mas falta profundidade à secção dedicada à experiência internacional e seus frutos. Falta um pouco de contexto, que permitisse perceber que a extravagância da figura de Variações talvez não fosse tão consensual como o filme parece, carinhosamente, indicar (sabemos que não o era). Faltam referências importantes a quem apoiou a sua luta pelo reconhecimento. Falta o foco em momentos dramáticos que sabemos que existiram. Falta algum rigor na caracterização das origens humildes em Fiscal e dos costumes da aldeia. Mas António Variações não caberia num filme. E por isso, onde tudo isto falta, sobra reverência e respeito: a relação com a mãe (mais complexa do que a retratada), a questão sexual, a relação com Fernando Ataíde (Filipe Duarte), a família “disfuncional” que formavam com Rosa Maria (Victória Guerra, lindíssima), a maleita que o terá vitimado, tudo é tratado com delicadeza e sem cair na tentação fácil de instrumentalizar os detalhes menos felizes. As canções, já eternas, são revisitadas nos arranjos de Armando Teixeira (dos Balla) e voz de Sérgio Praia, levando-nos num passeio pelo percurso do cantor, mais do que isso, pela pessoa – como algures no filme é dito, a música de Variações diz bem mais de António do que ele próprio. E por isso ele vive ainda, num imaginário musical que já não morre.
“E quem é que te disse que quero adaptar-me a Lisboa?
Lisboa é que tem que se adaptar a mim”
Em suma, o filme de João Maia pode não ser (e não é) uma biografia rigorosa. Exagera nas plasticidades, é omisso em questões importantes e em vários momentos desacertado. Mas dividamos objecto fílmico nas suas tantas componentes: na sua nota de intenções, não pretende ser imparcial, mas invocativo; do ponto de vista da interpretação, é não menos que fulgurante; o design de produção e guarda-roupa são belíssimos; o som e a fotografia são bons; o argumento é inteligente e ponderado, escolhendo não ser explícito quando o poderia ser e nada manipulativo tendo material de sobra para apelar à lágrima. Por fim, o filme vence-nos nos afectos, esse ingrediente sempre basilar, mas de difícil avaliação. É um filme para uma personagem, para um actor (o incrível Sérgio Praia) e para uma memória colectiva – sobretudo individual. Nele, cada um pode ler o que gostaria de ver e saber, e dois ou três passos para lá da nostalgia da persona, imagina, identifica, projecta e reconhece: é este o António – frenético, incompreendido e difuso – nosso e de cada um.