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Um ano após a morte de Manoel de Oliveira, continuam as homenagens e exibições da sua obra em Portugal e no estrangeiro. Como nestas coisas das artes há sempre obra que fica por apresentar, Manoel de Oliveira deixou-nos um último artefacto: um filme sobre a sua vida – família, casa amada e o cinema – para ser apresentado postumamente. Ainda que tenha sido exibido em 1982 e 1993 para a equipa da Cinemateca Portuguesa e há cerca de um ano no Porto e em Lisboa, é agora que Visita ou Memórias e Confissões finalmente se apresenta ao grande público. Uma média-metragem filmada entre 1981 e 1982, encontra o futuro mestre (aí apenas decano dos cineastas nacionais) numa encruzilhada pessoal; já nos 70 anos de idade, parece-nos que Oliveira prevê que o nadir da vida está para breve e, como tal, há que acautelar a memória.
Visita ou Memórias e Confissões é uma obra simples – concretizando: é um filme caseiro de Manoel de Oliveira, despido da sua aura de decano dos realizadores portugueses. Ali, é apenas o realizador e a sua vida, a sua mundividência, a casa e a morte. É Manoel (durante umas décadas, Manuel) Cândido Pinto de Oliveira que nos fala.
Eis portanto Oliveira no seu íntimo e âmago, com um home movie póstumo, dedicado a todos: família, amigos, cineastas e simples adeptos. Um documento que bem poderia ter sido reduzido a escrito numa qualquer conservatória do Registo Civil, se se tratasse de um testamento tout court. Mais: a ficha técnica é narrada pelo próprio em off no início, como um documento oficial, com dedicatória institucional aos Cineastas Associados, de que era membro.
Numa nota lateral, há que notar o apreço que temos sobre filmes que se debrucem sobre o íntimo do cineasta – não se trata de bisbilhotice, mas sim de saber qual o seu método e que o inspira. Um exemplo de charneira é Il mio viaggio in Italia, de Martin Scorsese.
O realizador, com toda a simplicidade, mostra-nos os filhos e netos, os pais, sogros e a mulher, levando-nos pela sua casa (excepcional exemplo modernista, pelo arquitecto José Porto), já vendida aquando da rodagem da película, após uma necessária hipoteca, dado o amontoado de dívidas. O desgosto de Manoel de Oliveira é evidente; ali vivia desde os anos quarenta, ali renovou o seu sangue e nome, ali viu alegrias e tristezas e ali desabrochou muito do seu talento – escreveu e planeou a sua obra no escritório, sob o olhar atento de uma gravura da Mona Lisa. Era a sua oikos, o seu domaine, sem vinho mas com vindima de película. Tudo fez para a salvar, mas não o conseguiu, que nem a Universidade do Porto logrou ajudar o cineasta em dificuldades.
A sobriedade de Manoel de Oliveira estende-se à descrição que faz das suas origens: católico e típico burguês portuense (ou empreendedor com uma costela diletante, da ginástica e das corridas de automóveis), fala-nos, sem pudores e com vividez, da fábrica do pai e dos seus trabalhadores, em particular dos de colarinho branco – autêntica montra social do Portugal do início do século XX: os operários são politicamente nulos, os escriturários republicanos e um ou outro funcionário especializado da Carbonária, como o mestre tintureiro. Novamente, a morte: este funcionário perdeu a memória e, sendo analfabeto e vítima do tempo, trocou as cores todas. A descrição do seu funeral, com direito a inversão de rumo no cortejo por via do anticlericalismo da Carbonária, é hilariante e um dos melhores momentos da obra.
Manoel de Oliveira aparece-nos aqui como um homem resignado, taciturno e, mesmo acreditando no seu próprio credo de que a morte é o «fim da macacada» e que dela não tem qualquer temor, adivinha-se o receio pelo sofrimento físico, para si injusto. Uma crise dos setenta? Talvez.
Certo é que há uma dignidade e estoicismo na sua postura que são admiráveis; Oliveira, de famílias católicas, a mostrar a sua veia de estóico, na aceitação da morte enquanto facto inegável, mas acompanhada da reflexão sobre o que são o Homem e o Absoluto, na veia de Marco Aurélio. O cinema foi o seu fulcro de vida, com os braços direitos agricultura, arquitectura e família a estruturarem a qualidade de vida de Manoel de Oliveira. A mulher, Maria Isabel, é retratada em Visita… como uma companheira em todas as dimensões: também vive a casa ao tratar das flores e acompanha o marido na cinematografia, assegurando o som de vários dos seus filmes.
Assim se completou a vida do realizador.
Não por acaso, e sendo Visita ou Memórias e Confissões a obra que se seguiu a Francisca, o realizador vai buscar Diogo Dória para a narração do texto que Agustina Bessa-Luís escreveu. As descrições de uma palmeira antropomorfizada num porteiro e de uma magnólia, pelo texto de Agustina e pelas vozes de Dória e Teresa Madruga, espécie de visitantes-fantasma da casa do realizador, conferem um sentido de humor sóbrio e pitoresco à obra – com um detalhe digno de Robert Frost. Tudo com o Concerto para Piano n.º 4 de Beethoven a assegurar a textura musical.
Pela casa do cineasta deambulamos, como se estivéssemos num first-person shooter, armados apenas com interrogações e algumas alucinações (o cão que apenas a narradora ouve), bem como algum pudor em remexer e comentar os objectos, tendo cada um sua alegoria. Uma nau avisa-nos de que nem tanto ao mar nem tanto à terra e, novamente a morte a dar de si, proclama-se que, se o berço é a árvore do nascimento, o caixão é a árvore da morte.
Em todo o seu íntimo e no plano da família, Oliveira partilha connosco vídeos caseiros dos seus filhos e netos, fazendo jus à sua vicissitude (ou sorte) de ter sido o único a passar do preto e branco para a cor e do mudo para o sonoro: os filhos a preto e branco, numa roda que nos lembra o quadro de Matisse e os netos, a cores e com brinquedos diferentes dos dos pais. Pouco diz sobre outros cineastas, mencionando, contudo, a admiração por Paulo Rocha (que considera o melhor realizador nacional) e, na escrita, por José Régio.
Já no plano das ideias confessa-nos o seu fascínio pelas protagonistas femininas dos seus filmes e a sua devoção pelo que é absoluto e supra-individual. Sobre as mulheres (e muito as filmaria, veja-se logo em Vale Abraão, com a musa Leonor Silveira, de beleza esfíngica e tragédia bovariana, mas também Catherine Deneuve em Vou Para Casa), exclama que a perversidade das mulheres torna os homens mais violentos, mas a presença apazigua-os – esta perversidade visível em Singularidades Duma Rapariga Loura, quase trinta (!) anos após Visita…. No plano metafísico, indaga-se sobre se a felicidade se deve submeter aos desígnios da divindade e à sua moral, perfazendo um padrão de fé, mas mantendo a individualidade e contrariando a perda desta preconizada por Kierkegaard. Confissões metafísicas à moda de Oliveira.
Num magnífico volte-face, Oliveira renasceria a partir de 1990, quando ‘Non’, Ou a Vã Glória de Mandar (obra apoteótica sobre o destino e desgraças de Portugal, desde Viriato até ao fim do Império, que levaria quase uma década a ser produzida e estava a ser escrita por alturas de Visita…) é finalmente acabado e estreado – pode mesmo dizer-se que os seus melhores anos (e filmes) ainda estavam à sua frente, o que faz de Visita ou Memórias e Confissões uma obra ainda maior – mas nada premonitória. Manoel de Oliveira passaria de decano a mestre internacionalmente reconhecido em Cannes e afins, com incursões até pela comédia, no magnífico A Caixa, no qual o realizador com o Porto no ADN filma, brilhantemente, a Mouraria, tudo encimado por Luís Miguel Cintra, outro enorme colaborador de Oliveira.
Manoel de Oliveira viveu muito, envelheceu magistralmente e foi livre, dentro do País que tínhamos. Se vários dos seus filmes são, no mínimo, de compreensão e ritmo difíceis (para não dizer outra coisa), outros são obras-primas de que o cinema nacional se pode orgulhar. São hoje documentos que ultrapassaram a vida do Autor, produtos vivos que expressam uma maneira de criar muito própria, longe da linha de produção do cinema mais corriqueiro.
Personalidade única, Manoel de Oliveira deixou-nos apenas e só fisicamente. Passou de documentarista e fundador espontâneo do cinema etnográfico português a cineasta de classe mundial já na terceira idade, passando ao lado da velhice e personificando a jovialidade. Se em Visita ou Memórias e Confissões o que mais tinha para oferecer eram credores, hoje o que não lhe falta são devedores no estudo da sua obra e em admiração por ela. O veteraníssimo cineasta já não grita “acção!” nem dá bengaladas, mas não morreu, ao contrário de todos os bancos que eram seus credores em 1981/82, fim da primeira vida de Manoel de Oliveira, que renasceria em 1990 e que foi, como disse João Botelho à imprensa aquando da morte de Oliveira, o primeiro a chegar à quinta idade.