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O mote para Wild River é simples: o impacto das inundações do rio Tennessee nas populações desfavorecidas do seu vale. De facto, é com uma vídeo de arquivo que começa o filme, mostrando o lamento de um homem que perdera a família numa dessas enxurradas, na década de 30. Com o intuito de prevenir semelhantes desastres no futuro, é criado em 1933, durante o mandado de Rooselvelt, a TVA, Autoridade do Vale do Tennessee, corporação federal com a função de controlar o rio (selvagem) e revitalizar economicamente a zona, através da construção de um sistema de barragens. Para isso seria necessário comprar terras do vale aos seus habitantes, e é esse o busílis da questão. Afinal, como tão bem diz Montgomery Clift, na pele de Chuck Glover, o novo funcionário que a TVA envia para uma das cidades do vale, os americanos são historicamente individualistas: têm dificuldade em aceitar que lhes opinem sobre a vida e ainda mais em acarretar ordens federais sobre as suas terras. A função de Chuck é precisamente a de concluir a venda de um último pedaço de terra que a proprietária, Ella Garth (Jo Van Fleet), não está disposta a ceder. Trata-se duma ilha que o marido de Ella cultivara sozinho, e onde esta vivera quase toda a longa vida. Por lá, vivem os seus filhos e, pelo menos, uma neta e dois bisnetos. Vivem e trabalham, também, muitos negros, coisa impossível na cidade na margem do rio: se se misturassem brancos com negros, explica o mayor, dado o espanto de Chuck, acabado de chegar de Washington, os brancos despedir-se-ião.
À primeira vista, a história poderia centrar-se na luta de Ella contra Chuck, contra a VGA e contra o conceito de progresso. A sua recusa em vender a ilha não é rabugice de velha, mas sim um manifesto pela dignidade do que é velho e já não se encaixa nos moldes modernos e pela necessidade de os homens suportarem as consequências das suas escolhas em consciência. Apesar de todos os benefícios palpáveis que as novas políticas pretendem implantar naquelas aldeias pobres, aquela ilha, um, foi o suporte físico e moral de toda a sua vida, dois, é a lembrança que tem do seu marido defunto e, acima de tudo, três, é sua, e isso deveria chegar. Sam, um dos trabalhadores negros na ilha, não vende o seu cão pelo mesmo motivo que Ella não vende a sua terra: aquilo que para os outros não tem mais do que um eventual valor económico, tem, para os seus proprietários, um valor que equivale ao da vida. Esta é também a história de uma América a mudar: com o fim da recessão e a iminência da 2ª Guerra Mundial, o valor de individualismo irá gradualmente dar lugar a um individualismo em valor (monetário, entenda-se). Kazan não é ingénuo e sabe que nenhuma das personagens neste conto (ou em todos) é um herói e tem o poder de cerrar a verdade nas mãos; pelo contrário, as visões díspares das mesmas representam na perfeição a dificuldade patente em discernir as vantagens e as desvantagens da luta pelo progresso, pela propriedade e pela identidade.
À segunda vista, a atenção do espectador volta-se para a questão da segregação naquela América dos anos 30. No Tennessee, historicamente dividido quanto à questão da abolição da escravatura, não é normal que um branco trabalhe ao lado de um negro e muito menos recebendo o mesmo salário. Quando Chuck oferece aos trabalhadores da ilha de Ella, os únicos negros que se vêem nas imediações, trabalho ao encargo da VGA, não o faz como um herói. É necessário compreender – e Chuck só o compreende literalmente à pancada – que isso desequilibrará o mercado de trabalho. Aqui, Kazan assume uma natural parcialidade pelo caminho da justiça social, aceitando, todavia, que este progresso civilizacional implicará outras perdas que não estão inerentemente relacionadas com a disputa racial: Ella perderá os trabalhadores que ela sente, de alguma forma, tão seus como a sua terra. Não se trata, aqui, de uma mera questão de posse, e não conseguimos sentir repugnância pela sua luta. A arte de Kazan é mostrar ao espectador, mais pela sensibilidade do que pela razão, o espectro das variáveis envolvidas, precavendo-o contra as tomadas de decisão bruscas e veementes.
Apesar do interesse destes dois enredos que se misturam um no outro, aquilo que dá realmente brilho a este filme é a relação amorosa que nasce entre Chuck e Carol, a neta de Ella. Na primeira visita de Chuck à ilha, quando vemos pela primeira vez os olhos tristes de Carol (Lee Remick), viúva, com dois filhos, adivinhamos o futuro envolvimento. E, no entanto, nada nos prepara para o ímpeto com que Remick se demonstra disposta a conquistar o apático Chuck. A viúva exilada na ilha da avó dá lugar a uma mulher tão selvagem como o rio que dá nome ao filme. A força de Carol vem precisamente da fraqueza de Chuck, alimentando-se dela para a completar. A imagem de confiança com que Chuck se apresenta no escritório da VGA, no início do filme, vai-se desvanecendo com o tempo: incapaz de dar uma resposta a Carol ou de ganhar uma luta com aqueles que frequentemente o agridem, ele é a imagem do actor que lhe dá vida. É importante recordar que Clift tinha sofrido, anos antes, um acidente de carro que deixara sequelas para o resto da vida. Kazan conhecia a doença de Clift e foi por isso mesmo que o escolheu para este papel. A sua fragilidade (que é, aliás, anterior ao acidente) é, quiçá, também a fragilidade de Chuck: é a fragilidade de quem não se sente encaixar bem no meio que frequenta. Parece estranho que seja precisamente a falta de virilidade de Chuck que desperta Carol para a vida, mas é isso mesmo que acontece. Os opostos atraem-se muito, tanto que, quanto mais relutante Chuck se mostra, mais Carol se assanha. E quando os dois se casam, nada de romântico há naquilo, nada de hollyoodesco. O casamento é uma mera questão formal e é possível que o (imenso) desejo de Carol não venha nunca a ser satisfeito pela (aparente) impotência do seu segundo marido, mas talvez nem seja esse o propósito dos dois. Novamente, Kazan deixa-nos em suspense, capazes de imaginar e de desejar saber mais.