David Bowie: Diamond Songs

por Arte-Factos em 12 Janeiro, 2016 © Jimmy King

Tivemos o privilégio de viver na mesma era que David Bowie. Inventou e reinventou-se, quebrou todas as regras e conseguiu marcar várias gerações, dos nossos pais a adolescentes que descobrem hoje a sua música. Foi um daqueles homens únicos e que merecem todas as honras e homenagens.

A perda de um ser humano extraordinário é sempre o momento mais perfeito para o recordar, e a nossa equipa partilha convosco qual a discografia de Bowie que mais roda lá em casa.

Station To Station (1976)

Escolho esta como poderia escolher dezenas de outras canções de Bowie. “Station To Station” dá título ao disco que antecede a magnífica “Trilogia de Berlim” e é o primeiro vislumbre do krautrock na sua obra. Nela, Bowie enterra Ziggy Stardust e apresenta-nos The Thin White Duke, a sua persona mais perigosa e temerária, um fascista cocaínado, críptico e paranóico. O shock rocker andrógino que vinha do espaço foi substituído, – e perdoem-me a tomada de posição – por uma personagem ainda mais fascinante e sedutora, mais real e muito mais incómoda, porque desta vez era um de nós. Musicalmente, é uma suite construída por 3 partes – 3 estações – que formam uma viagem cruzada por referências enigmáticas desde a Kabbalah, o fascismo, a magia, o oculto, o romantismo e os prazeres mundanos como a cocaína, com uma duração de cerca de 10 minutos. Há uma versão ao vivo, algures pelo YouTube – em que Adrian Belew expurga um solo através de um feedback feroz – obrigatória para compreender a era em que Bowie iria entrar, uma clara quebra de barreiras na música pop. Uma das grandes virtudes de Bowie foi sempre saber escolher os seus parceiros musicais e também por isso se tornou tão transversal e tão imprescindível no mundo da música. Não houve, não há e não haverá outro como ele. CVP

Starman (1972)

Um dos filmes mais importantes de 2015 não pode ser dissociado da presença de Bowie: em “The martian”, uma das cenas mais elevadas surge a partir de uma montagem de várias acções ao som de “Starman”, música cósmica, tema espacial e que serve a história de um homem preso em Marte, planeta agora ícone e símbolo para toda uma geração de sonhadores astronómicos. Uma esfera vermelha que foi colocada na nossa consciência como gente muito por culpa de um inglês. BR


Thursday’s Child (1999)

Consigo assegurar sem qualquer sombra de dúvida que ouço David Bowie há mais de 20 anos. Dono de uma voz inconfundível, era comum os discos tocarem em família. Atraiu-me pela obra-prima que é a sua persona Ziggy Stardust, e fui durante os anos que se seguiram a Izy Stardust no mundo digital.

Em 1999 lançou “Hours…” um trabalho que não agradou os fãs, mas que ainda habita hoje no meu coração. O primeiro single “Thursday’s Child” adquiriu um significado especial, pois eu vivia na época as habituais atribulações e mudanças próprias da adolescência, em que a infância deve ficar para trás e novos universos nos aguardam.

Num Portugal em que a tv cabo era tímida, eu vivia do satélite e seguia os programas musicais da BBC com toda a atenção. Participei e ganhei uma edição especial do CD de “Hours..”, com uma capa toda catita e uma mensagem da editora especialmente para mim, a maior fã portuguesa que conheciam. Foi como se tivesse vindo das mãos do próprio Bowie. IL

Ashes to Ashes (1980)

O período de 1976 a 1980 foi, inequivocamente, o mais importante da carreira de David Bowie. Colaborou com outros três dos maiores de sempre – socos com Lou Reed, álbuns com Iggy Pop e gravou a sua trilogia de Berlim com Brian Eno. Uma década de reinvenção constante em que David Bowie foi um Joe Montana de várias facetas, portanto.

Contudo, havia que fechar aquele ciclo, sem perder o balanço. Assim surgiu, em 1980, “Scary Monsters (And Super Creeps)”, de onde se retira “Ashes to Ashes”. Autêntica e magnífica súmula dos quatro anteriores anos, com o mestre rodeado de uma equipa tremenda: Bittan (da E Street Band), Alomar e Hammer (que marca a experimentação, com a guitarra-sintetizador). A canção é uma ponte entre o passado e futuro de Bowie: do agora caído em desgraça Major Tom até ao futuro dançável dos New Romantics, discípulos de Bowie. De jovem turco a força influente, no dealbar da nova década; guitarras e sintetizadores em cruzamento e Ziggy e o major em parte incerta.

Na componente visual, o vídeo da canção é outro portento: Bowie como Pierrot introspectivo – não por Colombina, mas pelas notícias sobre Major Tom, acompanhado pelos futuros New Romantics e pela devastação da retroescavadora. Daí até à cela do manicómio é um pulo: expiar pecados, mesmo nunca tendo feito nada de mau ou de bom, nem precipitadamente. Em suma, se querem levar a vida direita, façam como diz a vossa mãe e não se metam com o Major Tom e companhia, que nem Bowie os domou. JR

Moonage Daydream (1972)

Aos domingos de manhã era sagrado. Era acordada ou por Ravel ou pelo Ziggy no vinil. Ainda mal sabia inglês, mas dizia com ele “electric eye” e “pink monkey bird”. Passava as mãos pela capa do disco, contornava o Ziggy com o dedo e era casa.  Mais tarde vim a saber a história do escapismo por trás da criação do Ziggy Stardust, personagem eterna a quem o Bowie deu corpo durante dois anos. Ainda hoje, sempre que ouço os riffs iniciais estou em casa, deitada de pijama no tapete a sonhar com jacarés e pink monkey birds. RS

 

 

Changes (1971)

Look out, you rock’n’rollers, refere a canção de abertura de Hunky Dory. Estávamos no final de 1971 e Bowie escreve sobre o bicho criativo que viveu dentro dele até ao fim. Apesar de, na época, ter passado despercebida, hoje é uma das canções incontornáveis quando falamos de Bowie. Afinal, Hunky Dory marca um romper com os álbuns passados e um abraçar definitivo com o mundo pop.

A necessidade de se reinventar e seguir o seu próprio caminho está patente nesta canção, assim como as mudanças que estavam a marcar a sua vida pessoal: Bowie estava prestes a ser pai pela primeira vez.

Esta foi também a última música que cantou antes de se retirar definitivamente dos palcos, corria o ano de 2006. CF

Always Crashing in the Same Car (1977)

Berlim Ocidental, anos 70. Infelizmente, o comum dos mortais (especialmente quem ainda não existia na altura) só pôde ler sobre isso na internet. Uma vez mais, Bowie era o homem certo, no lugar certo, na altura certa, e com as companhias certas. Low foi o primeiro de três discos comummente conhecidos como a “trilogia de Berlim”, repletos de sintetizadores (Brian Eno por todo o lado) e influências kraut (que, aliás, já se manifestavam em Station to Station) e marcou uma das fases mais interessantes da carreira de Bowie. DSS

Little wonder (1997)

Tarefa impossível, nem sequer é a minha preferida nem mesmo daquelas a que regresso com frequência. Mas como todas as realidades, também a minha tem a sua banda sonora, frequentemente povoada com David Bowie. Uma pré-adolescência que começou com um ex-namorado a mostrar-me o Changes e imediatamente Bowie passou a fazer parte da minha vida. Há mesmo épocas inteiras cuja lembrança é acompanhada por álbuns inteiros que me remetem para aquelas pessoas, aqueles amigos, aqueles momentos.

Earthling foi o álbum que trouxe Bowie, ao vivo, ao Super Bock Super Rock, ali perto da ponte 25 de Abril. Creio que com 15 anos, fugi de casa e apanhei o autocarro do Porto para Lisboa. Fui a pé até ao local do concerto onde não paguei bilhete – ninguém que tivesse cartão de estudante pagava. Um cartão azul de papel com uma foto de cabelo comprido, risca ao lado. Fiquei na segunda fila e vi bonecos a caírem do ar. No meio do fumo era praticamente impossível acreditar que estava ali. Tão perto que foi, de facto, possível ver um olho de cada cor. Aquele casaco icónico (que recentemente inspirou o Hamlet de Cumberbacht), a incrível Gail Ann Dorsey, o novo visual de corte de cabelo curto e espetado e sempre, mas sempre, cheio de classe em cada poro, este som frenético e electrónico de Earthling (um dos álbuns mais criticados como «nada de novo») demonstrou que Bowie não só sempre esteve à frente do seu tempo, estética e musicalmente. Um vídeo incrível, que evoca Aladdin Sane e acaba por transformá-lo num boneco inanimado, como se fechando definitivamente (mais) um ciclo. Depois do concerto, regressei a pé pelo rio. Estava muito frio, sentei-me num banco de jardim onde dormi até que fosse hora de apanhar o autocarro e regressar a casa. Eu e o espírito tão cheio, tão efusivo, tão completo. Tinha visto o concerto da minha vida e já o sabia. LG


sobre o autor

Arte-Factos

A Arte-Factos é uma revista online fundada em Abril de 2010 por um grupo de jovens interessados em cultura. (Ver mais artigos)

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