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O Milhões de Festa, já um mítico acontecimento do verão festivaleiro português (e espanhol, pelo que pudemos constatar), deixou o calor abrasador de Julho pelo mais ameno de Setembro. A organização justifica-se na fuga aos meses mais conturbados da agenda veranil; seja como for, no pico ou já no findar da lassidão do Verão, o Milhões continua a ser o Milhões. Mas já lá vamos.
Para quem não está devidamente familiarizado com o acontecimento, explicamos: o Milhões de Festa vai já na sua 11ª edição, e é organizado pela Lovers & Lollypops. Divide o foco das atenções entre vários palcos — um deles, montado mesmo em frente à piscina municipal — e tomou, com justiça, um lugar de excelência no panorama nacional, tanto com concertos de nomes já bem firmados, como prospeccionando novos projectos emergentes e propondo experiências bem fora do mainstream. Este ano, os destaques claros foram para Squarepusher, em estreia por terra lusa, mas também se destacam Electric Wizard, ou os poderosos Circle.
Constrangimentos nossos vários fizeram de Sábado o único dia possível, dos quatro dias que o festival contempla de quinta-feira a Domingo; mas não podíamos deixar de o incluir no roteiro de Verão. Assim, partindo da vizinha Braga até Barcelos, pouco mais de 40 minutos e estávamos na piscina, a banhar à sombra do sol, no meio de saltos para a água, bronzes tardios na relva, caras conhecidas destas lides que têm no Milhões uma referência anual. Perdemos, por pouco, o concerto de Kink Gong (com quem estivemos à conversa pouco depois), autor de um dos mais curiosos discos que ouvimos este ano, Dian Long, e cujo concerto consistiu numa exploração austera de field recordings de orquestras de gongos asiáticas e outras composições. Não estávamos a brincar quando mencionámos as inusitadas propostas do Milhões.
Havemos de voltar à piscina. Mas daí, vagueámos pelas ruas do centro de Barcelos em busca do coreto, a localização surpresa – e descoberta apenas um par de horas antes – para o concerto de Vaiapraia e as Rainhas do Baile. Integrando o ciclo de espectáculos espalhados pelo resto da cidade, permite algumas bizarras justaposições de estilo; e assim, o synth-punk (?) deste belíssimo trio juntou uma bonita moldura humana que lhes assistiu, ora de pé, ora espalhados pelo jardim circundante. Bonito momento.
Apressadamente, percorremos o caminho de volta: e regressados à piscina, pois claro, para um dos nomes que mais esperávamos, sem qualquer noção do seu conteúdo além de uma estranha premissa. Todas vestidas em disfarces completos e grotescamente pintadas de azul, o concerto liderado por Natalie Sharp (em colaboração com mais duas artistas, tendo uma delas, Phantom Chips, actuado no dia anterior) trouxe um projecto denominado BodyVice. Para o entender, recorde-se o mote de Phantom Chips: instrumentos criados pela própria, que interagem de formas inusitadas com o corpo e o espaço circundante; e foi nesse sentido que este projecto conjunto evoluiu. A música que criaram vem, na sua larga parte, da interacção do corpo com aparelhos específicos — disse-nos Natalie, depois do concerto, que o seu objectivo é “conseguir banir completamente o computador do palco e ter tudo a ser produzido pela anatomia humana”, numa ideia que surgiu depois de uma “experiência transcendental” dentro de uma máquina de ressonância magnética. Pretende, de certa forma, emular aquele som: “aquilo soou a techno mesmo muito bom, um pouco hipnótico”, diz-nos. Construiu-se tudo com uma flauta em palco – provavelmente o único instrumento acústico -, o Kaoss Pad de Natalie, algumas vocalizações e samples; eventualmente, percebemos que havia uma relação entre uma das artistas e o seu corpo, que era percorrido como em circunstâncias semelhantes se faria com um theremin. O concerto, segunda a própria Natalie, não foi inteiramente satisfatório: não conseguiram fazer com que o som chegasse da forma ideal, e ter-se-á perdido algum do detalhe sónico do concerto. O público talvez não tenha dado por ela, imerso que estava num espectáculo bizarro, de música alienígena e exploratória, e muito recompensador. Acabaram o concerto fora do palco, a espernear munidas de uma espécie de disco reflector ora entre as pernas ora em redor do seu corpo, pelo meio do público (a fazer lembrar interacções que Natalie Sharp convoca no seu outro projecto Lone Taxidermist). Estamos convencidos, e queremos acompanhar a evolução de BodyVice.
O dia avançava, a espaços intuindo ameaças de chuva (falava-se em trovoada, também), e vagueámos em direcção aos palcos principais. Da última vez que havíamos visitado o Milhões, o palco Taina estava fora do espaço dos palcos, existindo à margem e com entrada livre; agora, figura logo à entrada do recinto, com a obrigatória banca para umas comidas. O palco Taina funciona de forma eminentemente plural: o dia começou com Eduardo Morais, para mais tarde servir de espaço para uma sessão comunitária de yoga. E depois, música de guitarras estridentes e rock pesadão, sujo e sem merdas — como devia ser todo o rock, na verdade. As nossas atenções dedicavam-se à antecipação de Gazelle Twin, nome periférico da música experimental, mas já lá vamos: porque, antes, houve a abertura do palco Milhões com os WWWater, grupo declaramente centrado na performance da vocalista Charlotte Adigéry. São três membros em palco, com mais um teclista e um baterista, mas Charlotte rouba todo o espectáculo, autêntica one-woman-show no que à energia diz respeito; e a música, embora nem sempre bem definida e em direcção a motivos interessantes, desliza bem e encaixa-se com facilidade.
Com Gazelle Twin, o primeiro nome do palco Lovers, a história é outra. Surge apenas com um dj, estacionado do lado esquerdo do palco, e totalmente vestida de vermelho e branco, com uma flauta a pender-lhe do peito, como se a faceta de artista fosse um biscate na vida de power ranger. Esta é a personagem que enceta no novo trabalho PASTORAL (entretanto editado), numa carreira que a vê metamorfosear-se praticamente a cada novo trabalho — como uma segunda pele que enverga e que a transforma também. Tem apontado, nas várias entrevistas de antecipação ao disco, a uma espécie de reacção ao mundo como está hoje: ao Brexit e ao Trump, ao medo reaccionário, enquanto, e talvez por isso, recupera uma estética folk directamente ligada à história musical inglesa, e moderniza-a com a electrónica e as tendências industriais que lhe conhecemos. Ao vivo há contexto que se perde — até porque as suas letras, embebidas em uivos guturais e pós-produção grotesca, se tornam inteligíveis — mas, por outro lado, surge a intensa fisicalidade que transforma a música do seu contexto de estúdio. E há de tudo: silêncios, drones opressivos, flautas solitárias: Elizabeth Bernholz está cada vez mais capaz e com mais coisas para dizer.
O resto da noite seria em registo de vai-vem entre os dois palcos, montados à distância de cerca de quinhentos metros percorridos ao lado de comida, matraquilhos e um automóvel vermelho. Ele que começou o dia intacto, figura serena ainda que deslocada, e talvez por isso progressivamente devassado ao ritmo do caminho da noite. Violentado na carroçaria, por pés e por tinta, e na sua buzina, a dada altura estimulada ininterruptamente durante um largo minuto — um evento sónico singular e comunitário, ao qual até a segurança do recinto decidiu assistir, impassível, prestando-lhe a silenciosa anuência — e para isso houve palco e público em reunida improvisação. A buzina deu de si até se lhe esgotar a voz, e o momento ficou selado após um retombante aplauso e ovação.
Houve ainda, no palco principal, o concerto de Nubya Garcia, nome emergente do jazz contemporâneo; e aqui foi impossível não pensar na identidade deste festival, que alegou desta vez, a propósito de um slogan, a mutabilidade da tradição. Mas não está aqui tudo o que faz do Milhões um festival especial e genuíno no panorama nacional? Nubya trouxe uma estética acessível e de igual forma eclética, para um público interessado, num palco grande e amplo; foi precedida por um dos mais bizarros e desconcertantes espectáculos da noite, e seguiu-se-lhe o punk directo das Bala. Ainda assim, houve (bastante) público para a britânica, de quem ela cuidou bem; e somos impelidos a imaginar que poucas são as propostas tanto em Portugal como no resto da Europa que reúnem este tipo de ecletismo. Mais tarde, chegariam os Electric Wizard, com o seu doom tintado de pornografia e muita erva, ou DJ Paypal e o seu virtuoso set, plural e futurista no domínio da música de dança mais acelerada.
Portanto, no que a nós toca, a tradição continua: há em Barcelos um festival diferente, à margem do roteiro dos grandes (em tamanho estrito, diga-se), ainda com a inalterada missiva de cartazes plurais e tendencialmente vanguardistas. A cidade continua acolhedora e um óptimo cenário para este fim-de-semana tão especial. E de resto, é impossível não imaginar que surpresas nos trará para o próximo ano. Digam o que disserem, a tradição até pode não ser o que era; mas o Milhões, esse, continua a ser o Milhões.
Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)