Reportagem


Alabaster DePlume

O nosso tempo e a gentileza são armas formidáveis.

Galeria Zé dos Bois

29/02/2024


© Ricardo Almeida

Nos últimos anos, tem-se assistido, no espaço público, ao uso e abuso da palavra “empatia”, muitas vezes dissociada do seu conceito e confundida com compaixão ou com afecto. Não há bicho-careta, humanista de trazer por casa ou político que não recorra àquela para armar ao pingarelho sinalizando virtudes nas redes sociais e/ou na comunicação social ou, juntando-se tudo num caldeirão de demagogia, na retórica política. Contudo, pouquíssimos são aqueles que são verdadeiros nas suas intenções e sentimentos. Afigura-se ser esse o caso de Alabaster DePlume, humanista de saxofone e guitarra oriundo de Manchester mas crescido pessoal e artisticamente em Londres e que dali foi para o Mundo – mais concretamente para a Galeria Zé dos Bois.

Esta passagem por Lisboa (com datas também em Coimbra e Braga) insere-se na rubrica Super Ballet, que conta já com vários nomes sonantes no seu historial (como Model/Actriz recentemente). Ao histórico junta-se agora Alabaster DePlume, nome artístico de Angus Fairbairn, músico e, como se testemunhou, várias outras coisas. Com casa cheia há semanas e expectativa palpável prescindiu-se de primeira parte e partiu-se directamente para o prato principal.

Vinte minutos depois das dez da noite entrava em palco o trio encabeçado por Alabaster DePlume. De keffiyeh aos ombros (relembrando uma das suas causas, não tendo Gifts of Olive faltado no alinhamento), de luvas sem dedos que são marca registada e parecendo alguém vindo de uma distopia dickensiana, a pose de DePlume é quase de um lente de Cambridge de antanho – pose desfeita segundos depois, quando este sorri e lança: “vocês pensam que me vieram ver, mas eu é que vos vim ver!”.

Destaque logo para People: What’s the Difference?, retirada do magnífico Gold – Go Forward in the Courage of Your Love, obra maior de 2022. Expansão sónica de um disco já de si construído sobre o improviso de DePlume e artistas convidados, resultou num abanar de ombros e em mais sorrisos (a noite seria uma acumulação deles).

Para além do talento para a música e para spoken word, as duas outras fundamentais características de DePlume em que meio mundo repara (e a outra metade não repara porque não sabe que ele existe) são a sua excentricidade e, aliada a esta, a sua gentileza. No seu contexto, DePlume é um polímata cujas actuações exprimem dimensões que não são fáceis de transmitir em álbum: tanto improvisa musicalmente como diz o que lhe vai na alma a meio ou entre canções, numa tríade música-spoken word-improviso que não está ao alcance de qualquer um. E Alabaster DePlume não é mesmo qualquer um.

À primeira vista, Alabaster é aquele gajo meio frito ou a resvalar para o chato e cabeça-no-ar de um dado grupo de pessoas. Aquele gajo obcecado com chacras, que não mata um mosquito, que liga demasiado ao horóscopo (é pisciano, já agora), que adere com assustadora facilidade a charlatanices pseudo-filosóficas (insiram aqui a que mais abominam) e que toma para si as dores do mundo. Este escriba admite sem reservas que esse tipo de pessoa está bem longe de ser do seu agrado.

Porém, sucede que há excepções, até porque, num mundo de falsidades ideológicas, frivolidades, manipulação política, desonestidade intelectual e prepotência na vida real e nas redes sociais (X, TikTok e Reddit à cabeça), a autenticidade de DePlume deve ser premiada. Para mais que DePlume acrescenta muito ao acervo musical contemporâneo e, caramba, mesmo se for uma personagem, é uma personagem e tanto – a sua empatia e gentileza não são selvagens, como cantou o saudoso David Berman, mas armas suaves.

Num dos vários interlúdios, Alabaster atira uma frase lapidar da noite: “se me perguntarem como é que toco não saberei responder”. Com efeito, DePlume não enfatiza muito a técnica. Não sendo melodramática, a sua música tem um pendor emotivo, como um autêntico acrescento à spoken word. Quando DePlume diz que adora o nosso tempo e salta genuinamente de alegria por isso e abraça a malta no bar, muitas das notas do seu saxofone reflectem esse estado de espírito – os actos são uma continuação do afecto e da empatia, consubstanciados em gentileza.

Não se pense, contudo, que a ausência de obsessão técnica redunda num jazz experimental lo-fi. Ao invés, os diálogos entre o saxofone de DePlume (cujo timbre lembra o do Ethio-jazz de Tesfa-Maryam Kidane), o baixo de Ruth Goller e a bateria de Momoko Gill revelam uma interligação que mais parece que a digressão vai a meio, de uma máquina oleada precoce – e não de uma procissão que ainda vai no adro. Transcende-se o limiar da textura e trepa-se para o território do memorável.

À nossa volta, espectadores fecham os olhos, põem as mãos ao peito e ondeiam ao som da secção de ritmo e do saxofone titubeante (ou da guitarra). Se há imagens que valem por mil palavras, estes gestos valem por mil salvas de palmas. Finda uma Be Nice To People de excepção há quem se sinta como uma namorada de George Costanza depois de um risotto.

Muitas vezes há em que uma versão de uma canção ultrapassa a original e é mesmo esse o caso de I Was Gonna Fight Fascism. Partindo da versão original dos Soccer 96 (duo de Max “Betamax” Hallett e Dan “Danalogue” Leavers dos extintos The Comet Is Coming; aquela conexão com a cena jazz actual de Londres) e na qual participa como vocalista, DePlume centra os devaneios da letra num comentário folgazão e subtilmente mordaz sobre os problemas quotidianos e pós-contemporâneos se sobreporem a causas superiores a nós – o ecrã do telemóvel e o vício do café são mais importantes do que lutas ideológicas. Um dos melhores retratos da mente deste tempo que, apesar de tudo e como o próprio reitera, é nosso.

Expressivo como Piaf e trazendo consigo o humanismo como peça fundamental da nossa salvação (“obrigado por viverem”), interpreta uma óptima versão de Don’t Forget You’re Precious. O pormenor do ad-lib do seu número de identificação da Segurança Social britânica é um dos momentos de humor sobre o quotidiano que distinguem Alabaster DePlume dos demais e que o colocam numa categoria só sua.

Ainda que oriundo de Manchester e com veia cómica, o humor de DePlume é situacional e não confrontacional (para não dizer ofensivo), como o do conterrâneo Bernard Manning. Se o segundo nos chamaria uma cambada de lorpas a ver um gajo a soprar e a dizer piadolas, o primeiro não se cansa de nos elogiar e de nos lembrar que é “um pisciano com um PA e sem vergonha, como um bebé ou um puto estúpido” – e muito dado a harmonizações vocais com a sua banda (e uma hilariantemente bem sacada com o público), novidade em relação à outra vez que o vimos, há coisa de ano e meio lá pelo estrangeiro.

Do improviso ao (nosso) sorriso vai um par de notas e outro de frases de Alabaster. Por falar em sorrisos, congemina um como se fosse um vilão de filme de capa e espada (e ajudado pelo eficaz trabalho de luzes e fumos), vira-se para nós e proclama: “aquilo que vocês vieram mesmo ver é um inglês esquisito a ser inglês!”. Acrescentamos: e um homem numa missão, que embala um saxofone como quem embala todo o tempo e toda a gente.

Mais do que simples empatia, DePlume exprime esperança e gentileza, mesmo tendo consciência de que as coisas por este mundo não andam famosas. Ao contrário do pessimismo dos Cro-Mags de que a paz mundial é impossível, Alabaster fica pelo meio do caminho e recorre de novo aos Soccer96 e à sua Buy It; sarcasticamente, acredita-se que com uns dinheiros valentes dará para, querendo, comprar a paz, uma comunidade decente e saúde.

Um salto de felicidade assinala o fim de praticamente todas as canções, como se de uma comemoração de um golo se tratasse. Diferente da versão de estúdio, I Want a Red Car não foi nenhum calhambeque; a tensão do baixo substituiu o piano de estúdio e deu um negrume pouco característico ao humor e vivacidade da versão original, por vezes soando o saxofone mais como um clarinete de klezmer do que ao jazz expressionista (e, como tal, experimental) de DePlume.

Em cerca de duas horas, Alabaster DePlume e sua banda expuseram uma tríade de execução livre e, ao seu estilo, acertada, resultante num concerto singular. Goste-se ou não da música e do seu contexto, há ali genuinidade e talento e concorde-se ou não com as posições, há ali humanismo, optimismo a rodos e crença na gentileza. Das origens em Manchester (cidade que muito deu à música popular ocidental) para o crescimento pessoal e artístico na metrópole global que é Londres, DePlume tem mundo e coração, como que um Bertrand Russell em cima de um palco.

Nunca elanguescente, seja na suave energia da sua música ou nas ideias que expressa, Alabaster DePlume é um continuador contemporâneo do velho escrito de Goethe de que a gentileza é a corrente de ouro que une a sociedade. Por vezes soa a exagero? Talvez, mas é praticamente nato a DePlume, nada a fazer. Não é um humanista de trazer por casa nem um bicho-careta, é um missionário da gentileza.

Em breve conversa pós-concerto num dos bares da ZDB, Alabaster DePlume pediu-nos para que este texto fosse mais sobre quem o escreve do que sobre ele. Esta gentileza não podemos reciprocar, porque apesar de o tempo ser de todos esta noite foi só dele.

Galeria


(Fotos por Ricardo Almeida)

sobre o autor

José V. Raposo

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