Reportagem


André 3000

Memorável bizarria noise de quem (bem) arriscou.

Praia Fluvial do Taboão

14/08/2024


© Kai Regan

Ainda mal tinha saído e já New Blue Sun, disco a solo de André 3000 (nome artístico de André Lauren Benjamin), membro dos OutKast e referência do hip hop pela sua iconoclastia, dava pano para mangas. Seria gozo? Estaria o homem bom da pinha? Cadê a reunião de OutKast, meu?

Tudo isto porque o aludido álbum não é um disco de hip hop, mas sim um disco que mistura ambient e jazz experimental, um desfiar do que vai dando na telha a Benjamin e seus comparsas. É um álbum acessível? A espaços, mas por vezes o mais difícil é ultrapassar o facto de que André 3000 está ali a tocar instrumentos de sopro, não se lhe ouvindo os emblemáticos timbre e flow que o tornaram (conjuntamente com Big Boi) numa figura de proa do hip hop desde a década de noventa. A sua identidade artística agora é outra.

É um bom álbum para ouvir enquanto se lê (faça-se isso com este texto) e onde a liberdade criativa se sobrepõe às expectativas alheias. E falando em expectativas, mal foi confirmada a presença de André 3000 nesta edição do festival começaram as dúvidas – muitas delas legítimas – a pairar. Será que isto resulta no palco principal? Não ficaria melhor no Jazz Na Relva? Se for agendado para as nove e tal da noite dará asneira? Se for cabeça-de-cartaz não irá toda a gente adormecer? Será que esta gente tem arcaboiço e/ou paciência para enfrentar um concerto destes? Havia, pois, que tirar as teimas até porque, francamente, tínhamos receio de que a coisa não resultasse ao vivo.

Circunspecto, apresentou-se a horas em palco e acompanhado de praticamente toda a equipa que gravou o disco consigo (a saber: Carlos Niño, Nate Mercereau, Surya Botofasina e Deantoni Parks), Benjamin não tardou em fazer do sopro vida. Estruturalmente, o concerto foi dividido em duas partes, cada uma distinta da outra ao ponto de serem como a noite e o dia.

Ainda que estejamos perante um conjunto de crescendos e titubeações ambient (por vezes enfadonhas, diga-se) e a aparentar um Marshall Allen da Sun Ra Arkestra quando pega na flauta ou um Eric Dolphy distorcido (e ampliado pela tecnologia, que não havia flautas electrónicas no tempo deste) do díptico Inner Flight, nesta altura começa a formar-se com nitidez a distinção entre o André 3000 de obras como Stankonia e este monge do improviso que está a pouco mais de dez metros de nós. Não se estranha de todo a música, só (cada vez menos) o intérprete.

Benjamin não é um virtuoso das flautas. Não se sabendo quantos anos tem de prática, pelo que se ouviu no álbum e pelo que se testemunhou no concerto não precisa de o ser. Com uma banda e pêras, pontificada por Niño e Mercereau (“um mago, um autêntico feiticeiro”, como lhe chamaria André aquando das apresentações), é tecnicamente capaz de ir criando algo plausível ao longo do concerto.

© Hugo Lima www.fb.me/hugolimaphotography

Chegados a meio, é exactamente isso que nos revela depois de umas palavras de apresentação e de agradecimento por estarmos ali. Estamos diante de uma sessão bipartida de improviso, de criação inaudita, de (marca por nós registada) avant-garde à Coura. Espreme-se esta laranja e sai sumo e o rei vai vestido, com a concordância de vários músicos cá do burgo que assistiam ao enredo.

Para além dos arpeggios na flauta, as vocalizações enérgicas de André 3000 (a sua versão dos gemidos de Keith Jarrett) e o gongo de Carlos Niño contribuem para as texturas de um concerto cuja “esquisitice” subiu de nível da primeira parte para a segunda.

Se na primeira metade da actuação estávamos firmemente nos domínios da ambient e da distorção, na segunda entrámos na insanidade. O noise tomou conta disto tudo (por vezes a lembrar os “nossos” Fashion Eternal), e fomos rio acima naquilo a que bem poderia ser uma banda sonora alternativa à de Carmine Coppola em Apocalypse Now. Tanto faz se vamos Rio Congo acima em busca de Kurtz ou a entrar no complexo do coronel homónimo no referido filme, que a nossa bússola e carta são a aura deste flautista de Hamelin que nos guia até aos confins da bizarria – noise e não só, que de caminho André 3000 tratou de inventar uma língua composta por “todas as línguas que já ouvi falar”. Da invenção linguística até ao parentesco sónico do noise show com os Wolf Eyes e com uma Power Transfer Unit de um Airbus A320 valeu tudo.

Do Coura/Congo/Mekong (ou do Tonle Srepok) fomos directos à exosfera, num magistral final cuja libertação de energia deitou abaixo muitos muros. Coura foi OUT.FEST durante uma hora, na qual a música exploratória de André 3000 promulgou uma lei que, logo no seu artigo 1.º, estabelece que não há regras para a idiossincrasia.

Em termos de idiossincrasias de palco, o concerto de André 3000 foi superior ao de The Knife em 2013. Este, não obstante alguns momentos únicos, ficou-se pela pantomina e relegou a música para segundo plano; já em 2024 André 3000 deu um concerto exemplar e, sobretudo, original. Polémico? Outra coisa não seria de esperar, que a guinada foi demasiado grande para não gerar polarização. A única coerência do concerto foi o feixe que atravessou o palco na diagonal, tudo o resto estava ali para ser criado e, às vezes, imediatamente descontruído.

Para André 3000, prestar atenção nas aulas de Educação Musical valeu a pena.


sobre o autor

José V. Raposo

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