Reportagem


Arcade Fire

Na exaltação e êxtase da revisitação da sua obra, os Arcade Fire relembraram-nos que só sabem dar grandes concertos.

Passeio Marítimo de Algés

11/07/2024


© Hugo Rodrigues

Um dos contrastes desta edição do NOS Alive é o de comparar o culto de bandas que caíram no goto do público nacional em diferentes épocas e que acabaram por ser agraciadas (por assim dizer) com um visto gold, isto é, de passarem cá a vida. Dentro destes beneficiários, foi agora a vez dos Arcade Fire (que este ano tivemos já uma visita dos amigos The National), que ainda há menos de um ano andaram por cá noutro festival. Do culto de noventas dos Smashing Pumpkins na actuação imediatamente precedente passou-se para o culto dos anos zero dos Arcade Fire – da banda sonora da geração X para a banda sonora dos mileniais.

A banda sofreu um dano reputacional gigantesco no tumultuoso ano de 2022, no qual vieram a terreiro acusações contra Win Butler, co-líder (com a mulher, Régine Chassagne, igualmente multi-instrumentista) da banda, cuja conduta privada foi, pela prova recolhida (e ressalvando uma palavra contra a outra), bastante censurável ou, no mínimo, de moral bastante duvidosa. Depois de estalar o verniz no reino da Dinamarca, houve algo que não voltou a ser igual: a percepção que temos da banda. Contratar uma empresa de renome para lidar com o problema de relações públicas em vez de uma explicação cabal vinda dos próprios ajudou a transformar a banda numa marca e obrigando a separar as pessoas da sua obra – restando avaliar se a música sobreviveria ou não às broncas, que pelo meio houve a saída de Will Butler, irmão de Win.

Para um grupo que, mesmo tendo crescido vertiginosamente como cresceu, manteve os pés na terra através de uma atitude (aparentemente) genuína ao longo dos anos, seja com o lugar especial reservado ao país-mártir Haiti (em canções e em activismo, até porque Chassagne tem por lá raízes), seja pela exploração musical e pela qualidade das suas actuações, certo é que há coisas que dificilmente seriam como dantes. Concentremo-nos no som, então.

Quanto ao jogo jogado, Sound and Vision de Bowie no PA para começar a embalar o público e a bola de espelhos lá bem em cima, lembrando uma das partes da dualidade sónica dos Arcade Fire, desde há uma década virados avalanche dançável; a outra era a comemoração dos vinte anos de Funeral, disco que anunciou os Arcade Fire ao mundo como uma espécie de revolução com instrumentos.

Um botafumeiro colocado por Régine Chassagne assinalou o início da liturgia com fumo branco. Nem dois minutos depois, habemus Arcade Fire com uma entrada triunfal da banda em Neighborhood #1 (Tunnels), primeira canção do concerto e de Funeral, um grande encontro em crescendo entre o rock alternativo e a pop experimental. Cantorias aqui, saltos ali, gente às cavalitas acolá, ninguém diria que este é mais um concerto da redenção dos Arcade Fire, mas sim o costume para a banda canadiana.

Percorrendo-se os “bairros” de Funeral é possível concluir que a banda perdeu exactamente zero assunto desde que os vimos pela última vez há coisa de seis anos em Coura: toda a urgência e imponência do som e da verve de palco continuam lá e, como escrevemos na altura, não se detecta qualquer astenia. Tendo em conta o número de grandes malhas que a banda tem, o concerto (que começou demasiado tarde para um dia de semana, diga-se) bem podia durar três horas.

Porém, nem tudo tem o fulgor desejável. Ainda que as canções de We ganhem outro fôlego ao vivo, nelas a banda soa desinspirada, como foi o caso de Age of Anxiety II (Rabbit Hole). Só mega-fãs ou pessoas que conheceram recentemente o grupo de Montréal é que piram, que a malta da t-shirt coçada do Neon Bible aproveita para respirar um bocado e dar aquela olhadela ao feed enquanto o confetti nos cai em cima.

Para uma banda cujos concertos se foram tornando num ritual colectivo, Rebellion (Lies) é, em 2024, um dos seus rituais cimeiros. Ritual esse iniciado com o baixo de Butler, com o resto da banda a segui-lo (destaque para o mais recente membro da banda, Paul Beaubrun, e o seu djembé) e o público a ulular a reboque – como em tantas canções dos Arcade Fire, esta é daquelas que nunca farta, até porque é uma das canções do século. No despique entre banda e público ficaram todos a ganhar.

Com Reflektor dá-se um salto temporal e rítmico para a fase “pista de dança” do concerto. A bola de espelhos desata a girar e, naquela que dantes era uma canção e pêras de abertura de concerto e que agora é um separador sonoro, sente-se o espectro de James Murphy e da DFA – quem cant-, dança, seus males espanta.

Ordem para dançar e para filmar, dada a quantidade de telemóveis em riste mal Afterlife se revelou. Butler emula Matt Berninger e vem embrenhar-se na plateia, não se esquecendo de outra homenagem: um a cappella de Today dos antecessores de palco Smashing Pumpkins (“obrigado aos Smashing Pumpkins por existirem!”) e de Temptation dos New Order (esta uma repetição).

E para o meio-termo de carreira, nada? Bastam duas canções para se responder “tudo!”. No Cars Go é mais um turbilhão emocional no qual a banda se especializou, bem como a montra ideal do que são os Arcade Fire (qualquer versão da canção, obviamente); Keep the Car Running, aqui a pender para o heartland rock, completou uma dupla devastadoramente magistral.

Estando nós num subúrbio de Lisboa (ainda que paredes-meias com a capital), nada como continuar em The Suburbs. Da canção homónima e da sua continuação resultaram mais um coro enorme do público, para depois Butler se interrogar se um mergulho no mar daria em maleita – provavelmente, quer naquele ali ao lado ou, mais ainda, no mar de gente à sua frente.

Para todo o sprawl suburbano de Cascais e Sintra ouvir foi The Sprawl (Mountains Beyond Mountains). Apaguem-se as luzes como se se estivesse numa casa de fados, que está na hora do show Régine Chassagne; fenomenal canção que vê a synth pop pelos olhos dos Arcade Fire, nela Chassagne projecta as frustrações e a ânsia de libertação das grilhetas da tirania dos medíocres em agudos crescentes e numa coreografia (mais um clássico da banda) à moda da tuna académica de Montréal.

Já que se estava numa de refrães orelhudos, siga para Everything Now, último pé de dança do concerto, mas não o último coro futeboleiro da noite. A derradeira soltura dos bichos estava reservada para a última canção da noite e porventura “o” ritual dos rituais numa actuação de Arcade Fire.

Falamos obviamente de Wake Up. A vizinhança já devia estar mais do que acordada, pelo que restou a toda a gente cantar e berrar como se não houvesse amanhã: uns a letra que escreveram e os outros o que ouviam, que crescer para estar àquelas horas num concerto não é assim tão mau. E se te sentires melhor a chorar, chora.

Findo o berreiro certeiro de mais um concerto de uma banda que não sabe dar maus concertos, conseguiu-se separar a música das pessoas com sucesso e relembrar porque é que os Arcade Fire são não só uma das nossas bandas preferidas, como também um dos grupos do século, com marca evidente na música popular ocidental.

No PA passava Stand By Me e no palco Win Butler fazia um pseudo-karaoke tendo uma rosa como microfone. Como reza a canção de Ben E. King, a noite tinha de facto chegado (há já umas horas), não havia Lua visível mas não se tenha medo, que os Arcade Fire voltarão.

 

Galeria


(Fotos por Hugo Rodrigues)

sobre o autor

José V. Raposo

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