Reportagem


Fontaines D.C. + Wunderhorse

A inevitável consagração dos Fontaines D.C. rimou com coração.

Sagres Campo Pequeno

01/11/2024


© Theo Cottle

Tal como com as couves e as abóboras, também na música popular há fenómenos do Entroncamento, isto é, de algo que cresce rapidamente até atingir um tamanho inacreditável. Os Fontaines D.C., quinteto de Dublin com ramificações em Londres, são um desses fenómenos, ao ponto de, aquando do lançamento do seu segundo álbum, A Hero’s Death (2020), se terem visto numa batalha contra Taylor Swift e o seu Folklore para ver quem ficava com a medalha de ouro nas tabelas de vendas britânicas. Ganhou a Tay Tay, mas só com malabarismos de secretaria.

Depois da estreia entre nós no NOS Alive em 2022 e da grande consagração em Paredes de Coura há coisa de dois meses e meio, era tempo da confirmação dos Fontaines D.C. como banda capaz de arrastar milhares em nome próprio por cá, desta feita no Sagres Campo Pequeno. Infinitamente superiores artisticamente a bandas contemporâneas de crescimento hipertrofiado (como os Arctic Monkeys), os irlandeses souberam abandonar o indie rock sem assunto dos primórdios da sua existência (quando ainda eram um projecto universitário, por assim dizer) para se tornarem nuns próceres do post-punk de hoje em dia, tendo por alicerces do seu poder um poeta de maturação precoce ao microfone, dois visionários à moda dos Television na guitarra e uma secção de ritmo onde pontifica um construtor de texturas na bateria.

Neste seu crescimento vertiginoso, são uns U2 sem a parte chata do pseudo-activismo e da pretensão sónica conducente à mediocridade. São discretos e pouco se lhes conhece fora dos palcos, dos videoclips e do trabalho de estúdio e, francamente, ainda bem. Já chega de Bonos a pavonearem-se nos corredores do poder armados em messias enquanto nos enfiavam álbuns horrendos no iTunes. O efémero muitas vezes anda de braço dado com o ridículo.

Quando os vimos em Coura ainda faltavam uns dias para sair Romance, quarto álbum de originais e, mais uma vez, um dos grandes álbuns do ano. Representa, dentro da amplitude criativa do grupo, uma viragem como Pornography representou para os The Cure; tratando-se de irlandeses, os Fontaines D.C. têm o seu Achtung Baby/Zooropa/Pop bem antes dos conterrâneos – e Romance vale pelos três.

A abertura da noite coube a Wunderhorse, projecto a solo do britânico Jacob Slater (que também é actor, tendo interpretado Paul Cook em Pistol, mini-série sobre os Sex Pistols), entretanto tornado banda e com Midas (2024) para mostrar. Com todo o entusiasmo de quem não tem grande coisa a perder, actuaram tirando as bolas da britpop, do shoegaze e do post-hardcore do saco.

Com emoções e melodias à flor da pele (Silver meteu muita gente a dançar) a fazer lembrar os Boo Radleys ou os Ash (algum dia alguém teria de redescobrir estas bandas e torná-las parte da sua fórmula), Slater puxou pela voz que nem um maioral do emo, mediante uma parede de som instrumental. Também a britpop de maior nomeada como a dos Pulp teve a sua evocação em Teal – bastante superior à sua versão de estúdio, refira-se – e as ganas em Butterflies foram de quem tem o estômago e o amplificador cheio de borboletas.

Tempo houve para a banda dar uma perninha no post-hardcore (ou talvez post-britpop) através de July, canção de fecho (boa pontaria, dados os “I’m ready to die” do refrão) de um concerto formulaico, mas agradável a espaços, com as ganas de quem já tem calo ao vivo. Com jeitinho, bem que poderão abrir tardes em festivais grandes por cá.

No intervalo entre concertos, tocava Swingin’ Party dos Replacements no PA. Previsão de festão acertada, como se verá. Spoiler: foi um concerto muito semelhante ao do Vodafone Paredes de Coura, tal como parte deste texto.

Uma observação a fazer é a da presença de um público surpreendentemente variado. Se os Fontaines D.C. há muito que deixaram de ser banda apenas para melómanos mais atentos (na primeira vez que os vimos, há cinco anos, ainda o eram, marginalmente), a mistura no Campo Pequeno era uma de jovens para quem o rock alternativo ainda é vida com veteranos que descobriram que, afinal, ainda há bandas recentes com qualidade e que procurá-las é mais proveitoso do que rezingar por aí que já não há música de jeito.

Uma cortina branca tapa o palco de alto a baixo naquilo a que tresanda a sátira a manias de vedeta. Cinco minutos depois das nove da noite soa o crescendo de paranóia e desespero de Romance, canção homónima do mais recente disco da banda na qual, no seu auge, cai a cortina, revelando Grian Chatten, Conor Curley, Carlos O’Connell, Conor Deegan III, Tom Coll e Chilli Jesson, este só para digressões. Se é para comemorar uma ascensão fulgurante, que seja com a teatralidade que o momento exige e com um certo simbolismo à moda de William Butler Yeats, a cortina fazendo as vezes da máscara de ouro ardente de The Mask. Óró sé do bheatha abhaile, Fontaines D.C..

A partir daí foi uma sequência formidável que prosseguiu com Jackie Down the Line, malhão de Skinty Fia, penúltimo disco da banda. A composição, que pode ser sobre um milhão de temas (relações Reino Unido-Irlanda, drogaria ou gente terrível), é sintomática da maturidade que a banda atingiu em tão pouco tempo, visto que passam apenas cinco anos desde a estreia com Dogrel, um disco magnífico que figura, sem tretas, numa hipotética lista de melhores álbuns de estreia de sempre. E um público que puxou pelas goelas desde o primeiro verso para mostrar que conhece a letra de cor e salteado.

Prosseguiu o desfile de luxo com o simbolismo de Televised Mind e A Lucid Dream (imparável Tom Coll), duas vertiginosas e épicas invectivas com acordes que dispensam convenções da guitarra eléctrica (quem precisa de riffs para levantar uma plateia destas?). Sem exagero, poder-se-á dizer que o concerto aqui já estava ganho.

Com efeito, ao contrário dos U2, o riff não é central na construção sónica dos Fontaines D.C., excepção feita para a maioria de Dogrel. Os acordes de Conor Curley e Carlos O’Connell revelam-se mais pela nuance do que pelo poderio típico do riff e muitas vezes são interjeições interligadas algures no meio do ritmo e da voz, elevados pelos pedais e parte integrante de uma mistura de som, em estúdio e ao vivo, cabalmente democrática. Mais acorde, menos acorde, é sempre um diálogo vigoroso, onde a desconstrução e o oblíquo casam com um bizarro que é belo, com especial evidência para umas gigantes Big Shot e Here’s the Thing.

Por seu turno, Tom Coll é uma autêntica casa das máquinas, não havendo palco demasiado grande para ele nem para a afinação da sua tarola e Chilli Jesson é o multiinstrumentista que ajuda à transfiguração da banda no material mais recente. Não são veleidades de vedetas, que os teclados e a guitarra extra de Jesson (sem esquecer os teclados de O’Connell) agigantam o conjunto e asseguram que o material mais recente é transmitido com fidelidade à versão de estúdio.

Não obstante a entrega, os Fontaines pouco comunicam com o público (mal nenhum) e, salvo uma frase sobre a situação no Médio Oriente, não são dados a proclamações. O concerto em si é a sua proclamação, é o manifestar da sua identidade. O coração gigante lá atrás é o sentimento geral e a execução é como Cú Chulainn num combate da mitologia irlandesa.

Não pretendem mudar o mundo como os conterrâneos U2, pelo menos até agora. Preferem mudar de mundo, saltando da irishness (manifestação identitária irlandesa) dos três primeiros álbuns para, neste último registo, a surrealidade do amor no meio da quase-distopia que vamos vivendo.

Ainda sobre a centralidade da identidade irlandesa do grupo, premente nos seus três primeiros trabalhos, o equivalente nacional seria uma banda chamada Fontainhas (De Cascais?), cujos membros seriam gajos que, antes de pegarem nas guitarras, passariam a vida a comer pregos no pão (em vez das sandes de queijo gorgonzola de Ulysses), a beber taças de branco (em vez de vinho da Borgonha) e a obcecar sobre Pessoa e Camões (em vez de Joyce, Yeats, Behan e Mangan) e sobre os mitos e eventos construtores da identidade nacional, transpondo-os para algo interligado com comentário sobre os males contemporâneos que pode ser expresso com versos, acordes, batidas e pedais.

A banda tem andado incessantemente em digressão e isso nota-se: a fluidez na execução é notável, Curley (que também cantou sozinho Sundowner) e O’Connell entrelaçam-se nos overdrives e reverbs enquanto Chatten vai soltando a franga, vagueando pelo palco e esbracejando como que numa sátira (ou exame) ao estereótipo da estrela rock de multidões, ao mesmo que parece chamar a Primavera como se estivesse num poema de Brendan Behan. Até parece que o Campo Pequeno fica em Dublin, raios partam.

Porém, também se nota alguma fadiga, que certos agudos não são alcançados e os tempos por vezes parecem ligeiramente abaixo. Nada que impeça que a actuação seja brilhante, até porque a abordagem genuína do grupo ao post-punk mantém-se toda lá, com a carga simbólica de actuar perante milhares.

Os refrães orelhudos de Romance são uma decorrência natural – agora mais melódica – do dom que a banda tem para eles. Não é apenas o material daquele trabalho que é feito para grandes palcos, que tudo o resto é plasmado com precisão (ou não fossem eles uma banda “certinha”) em palco, só se lamentando que malhões como Too Real, Television Screens, The Lotts ou Bloomsday (e não querem eles ser associados a James Joyce) tenham ficado na gaveta.

Muitas bandas há que queriam ter nas suas melhores malhas as proscritas da set list dos Fontaines. E se a banda estava em velocidade de cruzeiro, qual era o andamento do pit?

Digamos que os ultras dos Fontaines D.C. resolveram fazer concorrência aos ultras do Sporting que uns quilómetros mais acima puxavam pelo clube num jogo caseiro. Toda a plateia e parte das bancadas do Campo Pequeno eram uma curva onde os fanáticos tinham os cânticos afinados logo desde o fantástico quarteto de abertura, não havendo um pé no chão nas redondezas das grades e Grian Chatten é o capo que orienta o tifo. Consagração que é consagração exige (e tem) o público rendido e com a lição estudada – mesmo que parte significativa só reconheça o material de Romance e Skinty Fia.

A voz de Grian Chatten faz parte do ADN da banda um tanto ou quanto como a de Liam Gallagher faz da identidade dos Oasis, de tal modo que em canções como os mandamentos de boa fé de A Hero’s Death (os versos de “life ain’t always empty” são mais úteis do que muita auto-ajuda que para aí anda; não se esqueçam de dizer aos vossos pais que os amam) e em Televised Mind ou A Lucid Dream a música torna-se numa melopeia dos seus dizeres. Resultou tudo em cheio e o público estava rendido aos tipos que nos relembraram, nessa premonição com acordes chamada Big, que iam ser grandes. Lisbon in the rain is theirs, a pregnant city with a not so Catholic mind.

O referido coração da capa de Romance em destaque no palco espelhou a relação entre os Fontaines e os fãs presentes e deu o mote para certo sarcasmo de uma banda que faz de algum desconforto que tem com a sua ascensão fulgurante conteúdo de letras das suas canções, como em tempos fizeram os Pavement. No que respeita à imagem, passaram de ascetas a estetas; parecem agora membros de uma boy band de noventas ou, pelo menos, figurantes de um videoclip que podia ser dos Excesso ou, ainda, de um vídeo de serviço público da época a alertar para os perigos dos então denominados “speeds”.

Este arrojo tem réplica nas novas canções. Death Kink é uma marcha contra relações tóxicas e a amplitude melódica de Grian Chatten alarga-se admiravelmente em Here’s the Thing, Bug e Horseness Is the Whatness, todas elas provando in loco que são bem mais do que chouriço para encher discos.

Quiçá o primeiro clássico da banda, Boys in the Better Land foi mais um apogeu desta consagração que rimou com coração. Uma jig irlandesa com guitarras (e porradinha no pit) cuja letra assenta que nem uma luva em dois países – Portugal e Irlanda – com diásporas assinaláveis, em que arranjar um carro porreiro para bazar do país é um imperativo, que isto aqui não se aprende (nem se ganha) nada. Neste confronto entre banda e público, ambos encarnaram o Farrington de Dubliners de Joyce, piursos por terem perdido um duelo de braço-de-ferro com outrem e prontos a despejarem a ira no pobre Tom.

Bem-aventurada foi Favourite para fechar o alinhamento principal, com dedicatória a todos os presentes. Canção maior da banda, é um hino de encher o peito, um upper jangle no qual Chatten ora é arrebatado pela nostalgia e pelo sentimento sobre a família (os nossos primeiros favoritos, pois então), ora cospe bílis sobre amor que ardeu e que se apagou sem se ver e sobre o tempo que fugiu sem medo de radares de velocidade.

Depois de dez minutos de aplausos em busca do óbvio, a banda regressa ao palco para In the Modern World, balada e tanto que aproxima os Fontaines D.C. dos Smiths, num lamento magistral à beira do abismo que arrebata o Campo Pequeno. De um mundo onde não há lugar para inadaptados e rebeldes prosseguiu-se para I Love You e selectas profundezas sombrias da Irlanda dos séculos XX e XXI, numa irmanação com Easter, 1916 de Yeats: o falso patriotismo de quem a vende aos bocados (temos para a troca por cá), as valas comuns dos filhos de mães solteiras em nome de Cristo e as campas com nome de quem foi autor material da sua própria morte mas que teve o próprio país como autor moral.

Para finalizar o encore e o concerto, a orelhuda Starburster; a composição mais fora da caixa do grupo e um bom motivo para irem buscar os teclados e o público instigar com uivos à Ric Flair os versos ácidos de Chatten. Breve metamorfose de um pit para uma pista de dança furiosa num derradeiro momento de êxtase antes do adeus.

De disco em disco, os Fontaines D.C. evoluem impacientemente, como uns Vladimires e Estragons à espera do seu Godot: neste caso, a sua ascensão a banda intemporal. Já estiveram mais longe disso, ficando só a dúvida se este é o seu auge e se terá continuidade ou se daqui para a frente será só mediocridade em recintos ainda maiores e uma legião de fãs que pouco ou nada tem a ver com quem ficou cativado logo desde os primeiros acordes de Big.

O que não mudou nesta meia década? Serem um grupo de erguer uma guitarra como se fosse um shillelagh (espécie de moca de Rio Maior irlandesa). Wolfe Tone e Pádraig Pearse bateriam o pezinho e comprariam os discos, apostamos uma sandes de gorgonzola e um copo de vinho da Borgonha. Não foi tragédia, desilusão, James Joyce e um das Caldas, foi mesmo concertão.

Por que morreram os filhos de Róisín? Não sabemos, mas estes “tataranetos” cedo se fizeram grande banda e agora são uma banda grande.

 


sobre o autor

José V. Raposo

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