Reportagem


Holy Tongue + Gala Drop

A construção de dois colossais monumentos pelos Holy Tongue e Gala Drop.

Galeria Zé dos Bois

21/03/2024


© Ricardo Almeida

Há setenta e poucos anos, o proto-situacionista Ivan Chtcheglov proclamou, em Formulário Para Um Novo Urbanismo, que havia que construir uma nova urbe, centrada na acção social e artística: a Hacienda que faltava construir. Na música popular alternativa, a “urbe” é uma empreitada que está em permanente construção há décadas, através da exploração sónica. E na passada quinta-feira a Galeria Zé dos Bois recebeu dois vultos dessa exploração: Holy Tongue, trio multinacional, e Gala Drop, nome maior nacional, que também se apresenta agora em trio.

Não nos deixemos enganar pela exiguidade do aquário da ZDB, que naquele palco estiveram dois colossos, cada um explorando o éter à sua maneira com o fio condutor dos efeitos de delay e reverb do dub. Se os Gala Drop têm sobrevoado e aterrado em territórios de dub psicadélico com lançamentos fundamentais recentes (Amizade, de 2022 e Sons Infinitos e Latina, ambos de 2023), os Holy Tongue ondeiam entre o psicadélico e o espiritual – por vezes em pé de guerra, como sugere o título do seu enorme disco do ano transacto, Deliverance And Spiritual Warfare.

No seu contexto, são dois grupos oriundos de uma curiosidade insaciável e, como bem se viu, de qualidade inegável. Os seus membros carregam consigo um historial de experimentação e de saudável cosmopolitismo sónico, com certa erudição mas sem caírem no bafio – e a opção estilística pelo dub distingue-os dos demais.

Com quase um quarto deste século decorrido e com cerca de cinquenta anos passados desde a sua génese, o som do dub (ou, se se preferir, a sua linguagem) muito atravessou desde o seu nascimento na Jamaica, em estúdios como o Studio One ou o Black Ark de Lee “Scratch” Perry. Partiu dos mestres que o criaram e desenvolveram, como o próprio Perry, Scientist, Henry “Junjo” Lawes, Errol Thompson, King Tubby ou Augustus Pablo (entre outros) para se tornar em fonte de influência ou mesmo numa linguagem-base como o jazz, o rock ou o hip hop.

Exemplos? Desde a influência no punk (ouça-se Sandinista!), no post-punk (com Jah Wobble dos PiL) e na no wave (ou no baixo post-hardcore de Joe Lally dos Fugazi) até às referências contemporâneas como Burial, Forest Swords ou Panda Bear/Sonic Boom (com remistura de Adrian Sherwood), o dub é pedra angular em muita da melhor música popular contemporânea ocidental. Prossiga-se, então, para a viagem do dub desde as Caraíbas até ao equinócio de Primavera lisboeta.

Ponto prévio sobre Gala Drop: são, inegavelmente, umas das grandes bandas deste país (mea culpa, que da primeira que os vimos, a abrirem para Sonic Youth, torcemos o nariz, que connosco a coisa só pegou a partir de Broda, disco com Ben Chasny). Compostos actualmente por Nélson Gomes (sintetizadores, guitarra), Afonso Simões (bateria, percussão) e Rui Dâmaso (baixo, guitarra), a sua importância não se esgota na música que criam.

São um esteio do que passa por (à falta de melhor designação) cena alternativa nacional: entre a obra construída pelo grupo, a organização de concertos (sem esquecer que Gomes foi programador da ZDB numa altura de afirmação da casa) e co-programação de festivais (como o Out.Fest, outra instituição nacional), ambas através da Filho Único, e a obra de Rui Dâmaso noutra banda lendária, os Loosers, não é possível escrever a história do que quer que seja a música popular alternativa nacional sem um longo capítulo sobre os Gala Drop.

Catorze minutos depois das dez da noite iniciava-se a demonstração de força de Gala Drop. Não foi necessária nenhuma entrada a rasgar, só mesmo um crescendo que todos foi envolvendo nos braços de um polvo psicadélico – que manifestou toda uma luxúria rítmica e melódica, esta graças à guitarra de Rui Dâmaso, afoita no wah-wah.

Quem disse que as guitarras não podiam ser um instrumento primordial no dub nunca ouviu Guitarra Voadora nem a devastadora versão com que fomos presenteados. Expansiva em relação à versão de estúdio, podendo até dizer-se que é uma entrada em dub progressivo, metamorfoseou-se num voo espacial propulsionado pelas guitarras de Gomes e Dâmaso. Do cosmódromo do Bairro Alto saiu o terceiro satélite português: depois do PoSat-1 e do AEROS MH-1, eis agora o Guitarra Voadora.

Ouro auditivo em Monte do Ouro. O piano maroto e os arranjos psicadélicos piscando o olho à Madchester e aos Happy Mondays torceram-nos o melão, só faltando um Bez em palco a acompanhar uma malhona sem complexos e com uma costela pop que lhe deveria garantir lugar cativo em compilações de música de veraneio. Não havendo Bez dançámos nós, que é feio deitar dança fora.

Enterramos não os pés na areia mas os ouvidos no PA e os olhos no palco com todo a crueza e liberdade de uma grande versão de Areal Dub. Toda a gente mais solta, com Simões a liderar a carga, em nova demonstração de poderio transcendente e de expansão para lá da obra gravada.

Ao longo de uma hora, muita absorção se deslinda na lição dos Gala Drop. Terry Riley, Sun Araw, Liquid Liquid, Miami Sound Machine e os Can de Future Days, tudo isto sem se tornarem formulaicos (e, como tal, medíocres), antes clarividentes e originais. Repete-se: se a banda em estúdio é formidável, ao vivo é fenomenal, com uma última descarga em forma de sessão de jam dub-funk em todo o seu esplendor.

A metamorfose de Gala Drop para um trio continuou-lhes a coesão criativa e performativa avassaladora – os anos e as fases passam e a banda mantém-se em forma de elite. Parafraseando o poeta que este ano chega ao meio milénio de idade, que os Gala Drop por serem poucos nada temam.

O primeiro monumento da noite estava construído e pelas 23:40h era hora de edificar o segundo. Em simultâneo com (dispensável) burburinho de sala, também os Holy Tongue começaram a actuação com certa calmaria, como se de um aquecimento se tratasse – samples de canto gregoriano e as primeiras demonstrações de fantasmagórica espiritualidade.

Se da outra vez que os vimos (no Out.Fest, pois então) a toada foi a de um batuque infernal, desta vez testemunhou-se uma alquimia de ritmo vigoroso e espiritualidade. Mantém-se a formação de Valentina Magaletti (bateria; membro de Vanishing Twin e colaboradora de João Pais Filipe, entre muitos outros), Al Wootton (produção) e Susumu Mukai (baixo, efeitos; também de Vanishing Twin). E daqui se partiu para algo digno de memória.

Valentina Magaletti é, por si só, uma força da natureza, Wootton um mago da produção (seja com samples, seja com percussão electrónica) e Susumu Mukai o cimento do conjunto, que dub sem baixo é como cabidela sem sangue. Aquela ri-se enquanto estralhaça a bateria, como um puto que finta meio mundo na rua, um chef que sabe que vai estremecer papilas gustativas ou um cientista que só tem momentos de “eureka”. Domina um arsenal sónico impressionante e transforma o único (e minúsculo) prato da bateria em leque improvisado, que afinal a sala sempre pendeu para os trópicos.

Uma genial Curse Removing foi ponto alto da noite. Nenhum dos membros do trio se conteve em levar a composição praeter legem, em especial Wootton e Magaletti; o primeiro alterou a produção e a segunda muito acrescentou à linha original. Auto-iconoclastia numa atitude punk que permeou toda a noite e que só agigantou a banda, cujas influências do catálogo da On-U Sound e de bandas como Mariah estavam agora inteiramente em evidência.

À medida que a actuação dos Holy Tongue foi avançando, diminuíam as pausas, como que para não dar cabo do embalo. Se o Doutor Emmett Brown não precisava de estradas para o seu DeLorean, então o trio também não precisa de aplausos, que a casa do dub é para se fazer.

No que a obra de Gala Drop é expansiva, a de Holy Tongue é tensa. Por vezes, a tensão atingiu um peso tal que remeteu mais para Om do que para os antigos do dub, cristalizando-se em jardas como a brutal versão de Seven Arrows a que tivemos direito, própria para um thriller ou um film noir. Não havendo cá filmes, ficámos com sons que, partindo do passado do dub (e, in casu, também do post-punk), nos mostraram o futuro.

Não restem dúvidas de que nesta altura da noite somos seguidores dos monges Holy Tongue num Angkor Wat assente em delay, reverb e polirritmos. A dança para a qual somos impelidos é um samsara com uma hora de duração.

Vamos pelas sombras numa atmosfera lúgubre, criada por Wootton com samples de voz ou a acompanhar o ritmo nos pads com samples de tigelas de oração budista ou de darbuka, em conjunção com o bom fundo do baixo de Mukai e os polirritmos de Magaletti (por vezes à moda de Safri Duo, como apontou o nosso Camarada fotógrafo) – ora truculentos, ora oscilantes entre texturas dos timbalões e a marcialidade da tarola.

Se o concerto de Gala Drop foi uma expansão, o de Holy Tongue foi uma transfiguração. A banda não dá dois concertos iguais e reconstrói o seu material como se nada fosse. O término com uma versão gigante de Misinai foi a última pedra no segundo monumento da noite.

Num tempo em que se vive num permanente excesso de informação (nem lhe discutamos a qualidade, por falta de espaço) e de uma sensação quase permanente de que já quase tudo foi feito, eis duas bandas que levam a cabo a sua viragem linguística através de uma absorção-reflexão-criação de novas linguagens (rítmicas e não só) distintas.

No ano em que se chega aos cinquenta anos de liberdade formalmente consagrada por cá, os exercícios ao vivo de Gala Drop e Holy Tongue são manifestações de liberdade e de virtuosismo experimental, de estabelecimento de mais uns quarteirões da tal “urbe” musical. Experimentalismos no meu caminho? Guardo todos, um dia vou construir uma nova dimensão.

Há que construir a Hacienda.

 

 

Galeria


(Fotos por Ricardo Almeida)

sobre o autor

José V. Raposo

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