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Há pessoas que fazem do caos bandeira. A diferença a estabelecer é que geralmente quem faz do caos causa ou é uma pessoa tóxica e desprezível que só quer ver o mundo a arder (ou que não sabe/quer organizar a vida) ou então chama-se Cosmo Kramer. Há, para nós, uma terceira categoria, um tertium genus: o de quem se bate por um caos construtivo, de soltar os bichos numa atitude positiva. Jeff Rosenstock, dínamo criativo e pregoeiro do punk, é um porta-estandarte do caos criativo.
Um dos fundadores do colectivo Bomb the Music Industry! (aqui tanto em reacção aos tempos das guerras de George W. Bush como no “bombing” do graffiti, isto é, de se deixar a própria marca por aí), que foram um verdadeiro cruzamento entre os Nation of Ulysses e os Titus Andronicus na década em que cá andaram (2004-2014), desde a adolescência que Rosenstock é um tipo distinto e idiossincrático. Prolífico e antagónico em relação a certas práticas das cenas ditas independentes, criou a primeira editora baseada exclusivamente em donativos e em se pagar o que se quiser, a Quote Unquote Records, e a partir daí foi um fartote, incluindo a composição da banda sonora de uma série de desenhos animados no Cartoon Network, Craig of the Creek.
Para além do punk, lo-fi é música de quem faz o que lhe dá na telha e, como tal, nada como chamar um nome nacional da onda para abrilhantar a noite e aquecer a sala. Calhou ao colectivo lisboeta de lo-fi Veenho a missão de abrir as hostes de um B.Leza esgotado (esteve o concerto previsto para o aquário da ZDB, mas a procura foi grande) e com vontade de entrar em ponto de rebuçado.
Pegando largamente em Lofizera, álbum do ano passado que entre o aprazível noise pop à moda de Seapony e a lâmina suja dos Yuck, para feedback onírico ecoar pela sala. Com mais noise do que em estúdio, o comboio de Veenho chegou à estação do shoegaze e, pouco depois, ao apeadeiro de quem já foi punk e deixou de ser em Ex-Punk. O snark em todo o seu esplendor, de Wavves para Glenn Branca (ou, em paralelo nacional, com Putas Bêbadas) enquanto o Diabo esfrega um olho (e carrega num pedal).
Honrados por tocarem com Rosenstock anos após terem ouvido a sua música em barda, dele retiraram a velocidade e a iconoclastia, bem como a terapêutica melódica (Paracetamol). Guitarras ao chão e noise ao alto para fechar, que esta pomada está bebida.
E que melhor maneira de arrancar com o concerto de alguém perito em fazer o que lhe dá na real gana do que pegar na Chop Suey dos System of a Down saída do PA e, mal entrando em palco, fazer ali uma versão (melhor do que a original, inchem) impromptu? Mais ainda, quantos do que ali estavam eram nascidos quando o single saiu? E quantos andaram às turras ao som dele ali ao lado no extinto Rockline? Tenham saudades do que não viveram ou sintam-se velhinhos, mas esta noite é de todos.
Equipado como se fosse jogar a final da NBA ou correr uma maratona, Rosenstock e respectiva banda entraram imediatamente em “HELLMODE” (título do discaço lançado no ano passado) e dele não sairão, tal como o público. Se os Beatles fizeram futurologia amorosa em When I’m Sixty-Four, Rosenstock resolve começar o concerto com WILL U STILL U, ficando-se pela futurologia amorosa de curto prazo enquanto liga o modo Julio Iglesias do punk de pastilha elástica e implora interrogando-se se ter metido a pata na poça o tornará num pária amoroso, em alguém com o corazón partío. Tendo em conta o berreiro do público, companhia não lhe faltará se por acaso acabar agarrado ao pau (até ver, é um gajo bem casado).
Antes de mais, a sinceridade linguística de Rosenstock (“só sei dizer obrigado e que beleza!”) e o manual de instruções/código penal deste concerto: “digam olá a quem está à vossa esquerda e à vossa direita e se alguém for um idiota com quem estiver à sua volta corram com ele!”, sem esquecer a sensibilidade de cortar nas luzes estroboscópicas, altamente prejudiciais para epilépticos.
O turbilhão emocional das canções de Jeff Rosenstock toca no âmago de muitos. É natural, porque é fácil qualquer pessoa minimamente consciente rever-se nelas, para mais quando são superiormente executadas: aquela pessoa que vive na nossa cabeça sem pagar renda mas que merece um despejo (LIKED U BETTER), imbecis privilegiados e entachados que não querem desandar do tacho, que dão conselhos inúteis aos outros e que merecem uma valente desconstrução facial e social (Scram!), desconexão pessoal e protesto político (HEAD), fobias, indolência e depressão (Nausea) e as contradições de virar a alma a um punk como tocar em festivais grandes (Festival Song). Todo um neo-neo-realismo para um público que cresceu com a Internet como familiar atípica e como fonte de resposta a todo o tipo de perguntas.
O resultado é um concerto em que ninguém pára quieto, com toda a panóplia de movimentos para mostrar apreço pela música (e nalguns casos para armar ao pingarelho); moshada, wall of death, crowd surf e a beira do palco a servir de prancha de mergulho, num suadouro exaltado (®) com guitarras.
O caos de Jeff Rosenstock é um caos vertido (e divertido) na atitude mental positiva (“positive mental attitude” ou P.M.A.) do hardcore nova-iorquino de há décadas, desde que os Bad Brains descobriram a pólvora da P.M.A. na obra de Napoleon Hill. E para Rosenstock estar ali a tocar é um pequeno prazer de grande efeito mental, saindo-se com um “this fucking rules! Lisbon fucking rules!” de largo sorriso e de fôlego a precisar de tréguas. O trocadilho de HEALMODE (muito gosta este gajo de maiúsculas) serviu para respirar um pouco no meio do caos.
Um concerto-caos que é também um fórum democrático. John DeDomenici, baixista de longa data de Rosenstock, pergunta quem é que esteve no concerto do Sabotage em 2018, naquela que foi a sua mais recente passagem por cá? Uma data de braços no ar, em óbvio regozijo mútuo. De então para cá agravaram-se a especulação imobiliária e a crise da habitação, que obviamente que foram abordadas por Rosenstock num pináculo do concerto, Wave Goodnight to Me – canção sobre gentrificação interpretada numa cidade que viu desaparecer o Sabotage para dar lugar a mais um restaurante tirado a papel químico de tantos outros.
Uma comparação convencional (e algo preguiçosa) do material ska de Rosenstock seria com uns Less Than Jake desta vida. Contudo, os arranjos de sopros que estão no cerne do ska e sua interligação com a melodia são mais intrincados, colocando Rosenstock noutra (superior) dimensão. Leave It In The Ska (de S K A D R E A M, álbum de versões de outro álbum de Rosenstock, N O D R E A M) foi uma montra da qualidade da banda, em especial de Kevin Higuchi, baterista cujas texturas (em especial no prato chinês) deram a crer que este era um concerto com um milhão de pessoas a ver, e de Dan Potthast, homem de vários instrumentos, incluindo teclas, saxofone e air guitar (!).
A cruzada emo altermundialista de 3 Summers foi o último refrão ultra-orelhudo da setlist, com correspondente coro da plateia para embaciar ainda mais as janelas da casa, desaparecendo o Tejo no meio do impressionismo da humidade. E a banda do palco, por meros segundos, não antes de Rosenstock lançar, com humor de bojarda categórica, que esta era a “nossa última oportunidade para lhes construirmos o ego com base no nosso entusiasmo.”
Regressados a palco e feitas as apresentações da banda, entre o édito autobiográfico anti-supremacia dos ecrãs, Pash Rash, esticadinho em solos num duelo entre Rosenstock e Mike Huguenor até quase desidratar toda a gente e o baladão We Begged 2 Explode, essa lição sobre as agruras da vida de um artista destas vidas e invectiva contra os fracos de espírito que abandonam a melomania rumo à irrelevância da normice e da vidinha banal, era hora de fechar um concerto fenomenal, daqueles com lugar cimeiro garantido numa lista de concertos campeões de um dado ano – e de vida. “Vemo-nos em menos de seis anos!”, prometeu Rosenstock. Esperemos que sim.
Aqui chegados, que diabo construiu o caos de Jeff Rosenstock nesta noite suada? Positividade imensa, daquela bem passível de constituir uma memória boa para sacar aquando de um momento mau da vida. Uma bomba de jovialidade, uma proclamação de eterna juventude no meio de reflexões sobre a vida, a carreira e o mundo.
O caos construtivo de alguém que faz o que lhe dá na telha, sem merdas. Ainda o veremos a fazer um álbum conceptual com uma orquestra, leram aqui primeiro.
O caos é um elixir da eterna juventude, aprenderam aqui hoje esta lição. Bem-vindos ao resto das vossas vidas. Oi! Oi! Oi!