Reportagem


Jessie Ware

A noite em que uma rainha se tornou na Nossa Senhora de Coura.

Praia Fluvial do Taboão

16/08/2023


© Hugo Lima - https://www.facebook.com/HugoLimaPhotography

Uma das regras fundamentais de qualquer melómano deveria ser a da obrigatoriedade de uma inversão de marcha ou de uma exploração sem medos nem preconceitos. No caso do Vodafone Paredes de Coura, passar de Yo La Tengo para Jessie Ware com espírito de curiosidade auditiva.

Passando os olhos por comentários em redes sociais, avistou-se um (felizmente) pequeno de ignorantes que teimou em apodar o cartaz deste ano com mimos pouco abonatórios. A referência a um “autêntico Paredes de Coura” peca por patética; não temos culpa de que o ouvido de certas pessoas tenha ficado preso algures em 2002.

O “verdadeiro Paredes de Coura” é aquele que nunca deixou de tentar trazer algo de novo e de mais interessante (e relevante). Se em tempos a vanguarda era a dos Arcade Fire e dos The National, hoje em dia é de bandas como os Thus Love e os Black Midi.

Mas vamos ao que interessa. Jessie Ware, artista de pop contemporânea com antenas viradas para o passado, é um dos nomes grandes desta edição e, com toda a justeza, o segundo cabeça-de-cartaz deste primeiro dia. Com ideias próprias cabais, rodeou-se também da melhor colaboração, perfazendo uma aliança capaz de produzir pop acima da esmagadora maioria dos seus pares – ocidentais e não só.

Depois de uma digressão a ver, comer e beber Portugal de Sul para Norte, chegou a Coura para, com uma banda e quatro dançarinos-coristas e um néon gigante com o seu nome, botar que tem. A jarda disco-pop estava em andamento.

Logo em destaque, Soul Control. Não destoaria na discografia de Earth, Wind & Fire ou de Chic e é apresentada ao público com um fôlego superior ao de estúdio. O público “alterna” gosta e vai-se mexendo – depois de várias horas de guitarrada indie sabe bem um festão.

Ware apresenta e envolve a banda no espectáculo e dá-lhes protagonismo, seja na dança, seja no canto introdutório de uma faixa. Está solta e a desenvolver um concerto memorável, assentando Spotlight como uma luva nos acontecimentos.

Só alguém sem capacidade auditiva pode ficar indiferente a Ooh La La. Entre a letra de homenagem à ressurreição do cavalheirismo e a melodia que puxa logo pelas ancas, nada como uma artista descomplexada e com nuance para tornar o que noutros seria banal em algo sensacional.

Somos da opinião de que um cover bem sacado abrilhanta qualquer concerto e agiganta qualquer artista. Claro que Jessie Ware tinha de sacar dessa carta, com uma potente versão (braços ao ar e refrão a plenos pulmões) de Believe, êxito de outra Deusa, Cher. Game recognizes game.

Há espaço para a sacanagem quando a artista saca de um cabo que mais parece um chicote e nos pergunta: What’s Your Pleasure?. Interpretação irrepreensível e com uma dose de malandrice que culmina com a vinda cá abaixo à plateia perguntar à linha da frente qual era o seu prazer. É o chamado “malhar um malhão”.

Término com Free Yourself, veículo para Ware mostrar o vozeirão e que não somos um número, mas sim um nome. E se algo estiver a saber bem? Pois que não se pare. A mensagem pop de Jessie Ware não é um tratado filosófico reformador do declínio moral vigente, mas é certamente uma mensagem positiva transmitida com uma verve que praticamente ninguém na pop actual tem. E isso, aliado aos altos valores de produção e à presença de Ware, é o que a diferencia de muita gente dos prazeres pop.

Dezasseis de Agosto de 2023, a noite da Nossa Senhora de Coura. Se Fátima teve (supostamente) o Milagre do Sol na Cova da Iria em 1917, então Paredes de Coura teve o milagre (confirmado) da pop. E, como milagre que se preze, foi infelizmente curto.

Se os Funkadelic já diziam em 1970 para se libertar a mente que o coiro se seguiria, então em 2023 dizemos nós, partindo da malhona e pêras de Jessie Ware, para se libertarem, começando pela mente e depois pelo ouvido. A dança seguir-se-á.

Palavra de Nossa Senhora de Coura. Ámen.


sobre o autor

José V. Raposo

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