Reportagem


Judge + M.E.D.O. + Worst

A estreia nacional dos maiorais do hardcore Judge no RCA Club foi história a acontecer diante dos nossos olhos.

RCA Club

23/06/2024


© Ricardo Almeida

Há opções de vida que se revelaram acertadas mal a decisão foi tomada. Geralmente, todas as que impliquem uma vida sem vícios entram neste acerto. Uma dessas decisões, como a que este escriba tomou em finais de Março de 2006 (mantendo-se até Abril de 2009) é a de alguém se tornar straight edge, isto é, de não fumar, não consumir psicotrópicos nem estupefacientes, não beber bebidas alcoólicas, não enveredar pela promiscuidade sexual e, nalguns casos, optar por uma alimentação vegetariana ou vegana; não é para todos, não é o único caminho saudável e não deve (leia-se não pode) ser imposto coercivamente. Pode, ainda, ser objecto de exploração artística, como é o caso da obra dos Judge, banda nova-iorquina de hardcore que ora se estreou por cá naquele que, para quem sabe, foi um acontecimento digno de registo.

Consabidamente, Nova Iorque foi, no último século, um centro de vanguardas da música popular ocidental. Entre outros, por lá se fez a ponte do proto-punk para o punk, através dos Ramones, Dead Boys, Heartbreakers, Richard Hell e companhia, lançando-se as sementes por outros pólos de vanguarda criativa, como Londres.

Porém, no hardcore Nova Iorque andou ao ralenti se comparada com Washington, D.C. ou Los Angeles. O êxodo dos Bad Brains para a cidade que nunca dorme foi crucial para estabelecer o som e recuperar o atraso em relação à “concorrência”. A partir daí foi um tirinho de poucos anos (mas muitas bandas) com uma vitalidade considerável que tornou o NYHC na mais forte cena local enquanto as demais cenas proeminentes dos Estados Unidos entravam em decadência (Califórnia) ou em metamorfose (Washington, D.C.); ascensão esta muito sustentada pelo crossover thrash dos Cro-Mags e pela youth crew dos Youth of Today, com os Judge igualmente em evidência, mesmo tendo estes uma obra curta mas influente, como tantas vezes sucede..

Primeiros do triunvirato da noite, os farenses M.E.D.O. tiveram uma plateia ainda a compor-se, mas rapidamente distribuíram Música(s) de Embalar sobre magnatas, dinheiro ganho sem mérito, políticos, assaltos ao nosso bolso e um dos versos da noite, sacado a Otto Gritschneder, “quem adormece em democracia em ditadura vai acordar”, com uma perninha lá pelo meio de Thiago Monstrinho, vocalista dos Worst, para aquecer a garganta e relembrar que hardcore é comunhão à prova de oceanos de distância.

Soando um pouco como Trinta & Um aqui e um pouco como Suicidal Tendencies ali (e umas rimas à Biohazard acolá), a banda de Faro levou a água ao seu moinho ou, parafraseando Ritual Ancestral, atingiu-nos com toda a força do martelo que o metal forjou. E da forja saiu ainda a tradicional partilha de microfone banda-público, como manda o figurino.

Quem tem M.E.D.O. não compra um cão, antes ouve hardcore.

Os senhores que se seguiam, os brasileiros Worst, vindos de São Paulo, deram logo a entender ao que vinham através de uma introdução lúgubre no PA (que nos recordou isto), mesmo a dizer para abandonarmos toda a esperança, que o pior (salvo seja) está para vir, incluindo gente no público a ladrar (uma homenagem a Donald Sutherland e ao seu sargento Oddball de Kelly’s Heroes, quem sabe). A banda não se fez rogada, dizendo que Portugal é a sua casa e que o concerto seria gravado para edição futura.

A plateia nacional engrossou, perdeu a timidez que lhe restava e praticou o pentatlo do mosh pit, numa ampla panóplia de idades. Pelo que se vê, o zelo dos fãs nacionais (e não só) de Worst é do tamanho do Atlântico, seguindo à letra o que se lê numa t-shirt: “violent fucking pit!!!”. O bicho tardou a pegar, mas pegou.

Thiago Monstrinho faz mortais e aterra na plateia, lembra Max Cavalera dos tempos áureos nas canções em inglês, faz vídeos da plateia, desfaz-se em elogios (“aqui em Portugal estamos em casa”) e em sinceridade (“com tanto ódio até parecemos uma banda de black metal!”). Por seu turno, o resto da banda deu material para as (dispensáveis) centrais eólicas e demais acrobacias de pit.

Com todo o escárnio do asfalto neste “domingo sinistro” e em sintonia com a pureza violenta dos Judge, os Worst não poupam nos piretes, não escondem o desprezo que têm pelo Brasil (!), por quem não é humilde e por quem não se esforça. Afinal de contas, “vencedores não sentem dores” (Vencedores) e, nestes tempos de comissão parlamentar de inquérito, a “verdadeira riqueza é a verdade” (A Verdade). Fecho com foto de família para mais tarde recordar e mais uma ronda de pancadaria como prenda.

Se o Marco Paulo tem dois amores, os Worst têm três: música, porrada e ódio. A ordem tanto faz.

Esvaziou-se a sala para reposição de líquidos, excreção dos mesmos ou uma baforada de ar fresco lá fora, mas mais t-shirt de Gorilla Biscuits, menos par de Doc Martens, era palpável no ar a expectativa, tal é o efeito de bandas deste calibre num público que sabe da poda – também assim foi noutra acendalha sónica de pits (tal como hoje, organizada pela Hell Xis Agency), os Napalm Death. Havia audiência de julgamento do colectivo dos Judge daí a nada.

Uma banda que declarou guerra a ambiguidades só podia ter War Pigs de Black Sabbath no PA a fazer a introdução. Com a declaração de interesses straight edge de Take Me Away entrou-se no mundo de Mike “Judge” Ferraro, John “Porcell” Porcelly, Matt Pincus e Sammy Siegler; notável que, passadas décadas desde as seminais edições da banda, a formação que temos diante de nós é a mesma de antanho. Ainda que se tenha feito o trabalho de casa de aferir se os Judge ainda dariam conta do recado em 2024, as dúvidas que restassem sobre isso foram desfeitas na jogada dupla Bringin’ It Down (homónima do mítico álbum que dominou o alinhamento) e In My Way. Acórdãos onde o monopólio da violência vem da letra da lei.

Alvalade estava transformada no Lower East Side. O algodão não engana, que eles não perderam nada e o calendário é só um papel na parede. À introversão de Ferraro, de cabeça e olhos cobertos mas pronto a berrar, corresponde a extroversão de Porcell (noutras vidas, Paramananda Das), uma das figuras mais influentes do hardcore, desde os Youth of Today até aos Judge, passando pelos Shelter – cuja marca se vê nos Hold Steady ou nas opções de vida deste escriba, aqui co-inspirando com Ian MacKaye.

Os Judge tinham por fito ultrapassar toda a gente pela sobriedade radical ou, se se preferir, serem mais papistas do que o Papa. A ideia não era nova, de resto; os SSD e os Negative FX pegaram na mensagem dos mestres Minor Threat e bem que tentaram fazer de Boston uma Meca straight edge nos inícios da década de oitenta.

A semelhança daquelas com Judge? Sónica, sobretudo. A violência aural das bandas mais arreigadamente straight edge não ultrapassa os outros, atropela-os. E num concerto de Judge é-se atropelado pelo furioso pit e, no que realmente interessa, pela música.

Se há género musical que faz das tripas coração, esse género é o hardcore. Uma raiva a nascer nos dentes (e na Les Paul de Porcell) que só se dissipa com uma entrega mútua, daquela que não dá espaço a arrependimento após o último acorde e o último choque nos pratos. Onde a devoção dá azo a exageros nem sempre saudáveis, mas também onde o ódio consegue ser transformado em algo construtivo, quiçá em paixão.

Sempre se refira que o ódio dos Judge é uma reacção e um aviso contra a auto-destruição, diferindo do ódio de bandas como os Sheer Terror (estes bem mais aparentados com o metal), cujo tiro está ajustado contra quezílias interpessoais – dentro e fora da cena.

O peso dos difíceis primeiros anos de Ferraro (grande, grande Hold Me Back), no seio (segundo o próprio antes de Where It Went) de “uma família de drogados e de bêbados” é a pedra angular da atitude militante (hoje bem mais reservada) e da obra de Judge. Nem tudo foi mentalidade, contudo: a lenda da banda também assenta numa certa vontade de provocar as virgens ofendidas que se achavam donas da verdade e julgadoras (piada intencional) da moral do hardcore. Isto é gente para quem ser straight edge representou uma tábua de salvação, um grito dentro de cada um para quebrar um círculo vicioso e regras que salvaram vidas.

De anos formativos complicados a novo profeta do straight edge, a pressão de se estar onde não se quer estar levou à implosão da banda. Os membros foram-se multiplicando em bandas (Porcell), tornaram-se monges budistas (Jimmy Yu, antigo baixista), deram em executivos da indústria musical (Pincus) ou foram simplesmente viver a vida longe da violência, da pressão e das intrigas (Ferraro). Vê-los de volta a estas lides é uma lição de vida, sobretudo quando Ferraro se vira para o público e profere que tem mais em comum com os presentes do que com alguém “lá de fora”.

Chegados a The Storm, estamos encharcados em ódio, numa comunhão que também é exorcismo. A repetição do quase-mantra “there will be quiet after the storm” é um ámen de fúria purificadora. A tormenta do messias Travis Bickle virá e esta será a banda sonora.

Where It Went, apresentada como “uma canção straight edge” é a melhor montra do som de Judge: uma guitarra que vale por duas, peso na medida certa, quebras brutas da xixa e palavras que são uma descarga das profundezas da tragédia pessoal, porque o fado também se faz a dois tempos.

“Nunca estive em Lisboa, não sei se vocês sabem cantar ou não”, confessa Ferraro, um dos grandes berradores do hardcore, na liga de Ian MacKaye, Dez Cadena, Henry Rollins ou John Brannon. A prova dos nove foi superada com um berreiro geral em Warriors, versão do original de Blitz – duplamente superada, porque a interpretação de 2024 meteu a de 1988 a um canto e transitou em julgado um concerto incrível. Quem sabe nunca esquece. Dura lex, sed lex.

Quarenta e poucos minutos bastaram para testemunhar a mística dos Judge. No meio de um meio com tantos ídolos com pés de barro e de grupos que envelheceram mal, a banda nova-iorquina demonstrou porque é que tem a lenda intacta ao fim de trinta e tal anos.

As virtudes da vida limpa dão frutos que demoram a colher.

 

Galeria


(Fotos por Ricardo Almeida)

sobre o autor

José V. Raposo

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