Reportagem


Julien Baker

A catarse colectiva alicerçada na fragilidade

Theatro Circo

18/11/2017


© Festival para Gente Sentada

Julien Baker esteve em Braga depois de no dia anterior ter actuado em Madrid; na noite seguinte subiria ao palco em Barcelona. É uma intensa tour europeia de promoção ao seu segundo disco, Turn Out The Lights, e a sua segunda passagem por Portugal em menos de um ano. Tem apenas 22 anos, e sobe a palco sozinha, com apenas guitarra e um teclado.

A sua música é um curioso fenómeno, manifestada primeiramente no disco Sprained Ankle, de 2015. A receita minimal, guitarra eléctrica em esparsos loops e ocasional piano, é apenas acessória para a força em bruto da sua voz, e as letras, da sua autoria, são extremamente confessionais, como se a lêssemos indiscretamente num diário escrito no ponto máximo da revolta adolescente. Nessa noite do Festival Para Gente Sentada, na composta plateia do Theatro Circo, a vasta maioria do público teria já passado por essas dores de crescimento; e a distância emocional que o tempo permite faz-nos crer que nem tudo foi assim tão importante. Mas então — porque está uma sala cheia para ouvir a música de Julien Baker, comungando num extraordinário silêncio, para ouvir, provavelmente, a artista mais esperada de todo o festival?

Baker é natural de Memphis, cidade do estado do Tennessee no sul dos Estados Unidos, onde a vida é bem diferente das metrópoles americanas. O sul é tendencialmente mais conservador que outros estados mais liberais, e é ainda muito ligado à religião cristã, da qual Julien é devota. No entanto, identifica-se abertamente como queer, e as suas músicas descrevem casos extremos de uma geração de millennials deprimidos, a sua existência toldada pelo abuso de álcool e droga, no determinante período de transição para a vida adulta. Esta óbvia contradição – ou latente fraqueza – é um ponto de nota essencial na sua persona artística, donde tudo porvirá em catadupa, o resultado de uma exploração interior e sem filtro. São disso exemplo virtualmente todas as suas músicas, cuja poesia se tornou mais literária (simbólica e metafórica, e menos narrativa) neste último disco.

Ainda assim, será difícil convencer alguém apenas com a sua capacidade musical. Embora o novo disco Turn Out The Lights aponte alguns arranjos de cordas de função atmosférica, numa fórmula estética que não se aprimorou (suficientemente?) desde o primeiro Sprained Ankle, a música sofre pela repetição dos parcos elementos; fica a sensação de se ter encontrado um espaço demasiado confortável para se preencher com os pensamentos de Julien Baker. Televangelist, por exemplo, encontra-a ao piano (que usa para também simular um órgão de igreja) num arranjo que a dada altura pode fazer lembrar a música de Joni Mitchell – de resto, Blue, a faixa e outras também melancólicas do disco, poderiam ser uma referência; como o são, mais declaramente, as vagas emo dos anos 2000 e o slowcore, um pouco mais antigo.

A dada altura do concerto, entre músicas, um entusiasmo feminino menos contido gritou bem alto uma curta declaração de amor. Uma primeira resposta, bem-disposta – “I’m sure if we had an opportunity to get to know each other a little better I’d enjoy your company”, algo deste género – deu logo depois lugar a um pensamento mais em linha com o que transparece da sua música: “love is such a strong word!”.

Será mesmo? Há algo na extraordinária sinceridade de Julien Baker que desarma o seu público. Ouvi-la é como estar presente num quarto onde alguém remexe as suas feridas abertas; e o que acontece não é necessariamente identificação, mas talvez a abertura de espaço para uma espécie de solidariedade, uma catarse nossa que parte de algo partilhado pelo outro. A beleza que vem da sua música carrega em si toda a dor que a formou, mas vai em caminho da esperança, pela fé e pela vontade, de algo melhor. Talvez o amor seja a solução para tudo isto. Se assim for, é de facto uma palavra forte, mas a usar sempre que possível.


sobre o autor

Alexandre Junior

Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)

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