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Há 106 anos atrás, uns quarteirões ao lado do MusicBox, uns senhores de bigode proclamaram a República para uma plateia cuja dimensão a fotografia engana. Sucede que, por uma noite, 106 anos depois, Portugal voltou a ter um Rei – este de seu nome Arish Ahmad Khan, nome real de King Khan, primeiro da sua dinastia, a dos Shrines. Contudo, antes de suceder a D. Manuel II como Rei de Portugal, era monarca de outro reino, que ainda desconhecíamos, para além de co-regente de outras terras com monarcas como D. Mark “BBQ” Sultan. Talvez se viesse a descobrir na sua aclamação.
Acto este que teve lugar no salão solene (já que não havia outro) do MusicBox, chão digno de ser pisado por Sua Alteza Real – de noite, claro está, que só à noite brilham as lantejoulas.
Não tendo sido a estreia de D. Khan em Portugal (até pela Zambujeira andou, em tempos idos), esta visita de Estado valeu para verificar se ainda há interesse e vitalidade pela facção The Shrines da obra. Pela quantidade de aristocratas que se viu no MusicBox (muitos deles estrangeiros, em maioria aquando da abertura de portas), uma monarquia da javardice tem amplo apoio popular em Portugal. Fazendo-se acompanhar uma corte multinacional de nove músicos, na qual pontificam Till Thim, guitarrista e co-regente e Ron Streeter, percussionista que colaborou, entre outros, com Curtis Mayfield e Stevie Wonder.
Chefe de Estado que é chefe de Estado tem de ter escolta e lá vieram quatro batedores, aquecendo a plateia com um improviso em crescendo, que se extinguiu a si próprio quando o resto da realeza se fez aos postos. Ei-lo, pois, resplandecente, de fato que 1974 mui respeitosamente lhe cedeu, cujas lantejoulas são os rubis deste soberano do cabaré garage.
Uma peruca grisalha por coroa e uma guitarra personalizada por ceptro, simbolizando a experiência e prudência dos grandes chefes e começou S.A.R. a decretar, ainda circunspecto, com “Bite My Tongue”. Em “No Regrets” já voam pandeiretas sobre as nossas cabeças, desfazem-se as dúvidas sobre se estamos perante um concerto em piloto automático ou se a coisa é a valer. É a valer, bem se vê pelo ius imperii da banda, de atletas que trocam de pandeiretas e um teclista genial, Fredovitch, que faz halterofilismo com o próprio órgão.
Parte da excelência de S.A.R. Khan e dos seus Shrines é a qualidade da mescla entre a garagem, o punk e os arranjos de sopros – estamos num cruzamento entre a Nova Jérsia d’O Boss, algures na Austrália dos Saints e a Tacoma dos Sonics -, tão bem patente em “So Wild”, de Idle No More, de 2013. Este Rei gostaria de ser rainha, contudo, como nos confessa em “I Wanna Be a Girl”, cantada a plenos pulmões – afinal, as muralhas do reino caem perante palavrões, o tralhame que levam nas malas e de cada vez que ficam de trombas. Não há espadas que valham quando elas se passam, ficou assente nesse magnífico livro de posturas chamado What Is.
Por isso mesmo era “time to get romantic” – Khan a confessar-se um tolo apaixonado, que nem D. Pedro I, Marco António ou Henrique VIII, sem a pancadaria, ao som de “Fool Like Me”. Nas grades, um soutien que tinha uma espectadora acoplada acompanhava o ritmo da corte.
Já se percebeu que o estandarte real tem por lema “Tudo a Tirar a Roupa” e que o Rei é simultaneamente soberano e trovador; trovas essas que serviram para homenagear outros da mesma laia, como William S. Burroughs e o clássico Naked Lunch, através de Let Me Hang You, LP que saiu este ano, no qual Khan é figura de proa – experiência que resultou soberba ao vivo. Já se sabe que King Khan gosta de passar em revista o roupeiro em palco, aparecendo, de súbito, com uma fatiota preta e peluda que nos levou a uma evocação de Harambe (ou de wildlings) – só faltou aquilo que a gente sabe de fora.
De seguida, finalmente descobrimos de onde é S.A.R. King Khan o monarca. Não é da antiga Prússia (onde vive), apesar de irromper que nem Frederico, o Grande, nem do Canadá, que há demasiado calor em palco – é, sim, da “Land of the Freak”. Frenesim geral numa grande canção que reúne toda a qualidade da banda. Khan é o soberano e chefe do poder executivo, com o Ministério dos Saxofones em destaque.
Não só de material antigo viveu o concerto, “Children of the World”, lançada este ano, trouxe à baila um pouco de soul e funk, depois de decreto a mandar a rapaziada “abanar o pandeiro”. Já que se estava naquilo e porque a javardice é a religião oficial de Khan, este deu ordem para o público se abaixar numa vénia e perguntou que som emitem quando estão “fazendo o amor” – a resposta foi um *suspiro* e um *gemido* de quem tinha visto uma bola ir à trave. Ou então porque o alinhamento principal acabou aí.
O povo aclamava o Rei e sua corte. Lá regressaram, sempre com capas às costas e ossos ao pescoço – já o Rei ficou reduzido a trajes menores, com a dignidade de uma capa a cobrir as carnes reais em toda a sua inquietante simplicidade. Rábula sobre um autêntico mergulho em território feminino, tão fundo que se perdeu lá dentro e acabou lavado (e a perder os óculos que a amada lhe deu pelo Natal), que nem Mao, que dizia que se lavava dentro das suas mulheres.
“Shivers Down My Spine”, balada que poderia ser oriunda de qualquer uma das últimas seis décadas, fechou mais de uma hora de brilhante, ousado e suado concerto.
Este é um Rei que não distribui comendas, antes dá lições de javardice e boémia tendo um palco por trono e um microfone por ceptro. S.A.R. King Khan e os seus Shrines vieram, foram aclamados, vistos e tornaram o País inteiro numa monarquia durante pouco mais de uma hora. Um dos grandes concertos deste ano.
Que voltem quando quiserem, que serão sempre aclamados e terão direito a feriado.