Reportagem


LeGuessWho?

Orquestras de drone, jazz e Yves Tumor

Utrecht

08/11/2018


© Tim van Veen

O LeGuessWho? é um festival que conta a sua oitava edição, e decorre na terra holandesa de Utrecht; uma cidade de médio tamanho, longe da dimensão das grandes cidades europeias. É, na verdade, uma metrópole bastante acolhedora, jovem e cosmopolita. Daí, a cidade ideal para acolher um festival tão singular: o LeGuessWho? decorre durante quatro dias com mais de cem concertos e instalações. O seu programa de actividades é enorme, dividido em vários recintos que, por sua vez, se espalham em vários espaços da cidade, desde grandes anfiteatros aos mais modestos bares nocturnos. O primeiro dia, quinta-feira, teve ainda uma oferta reduzida em relação aos seguintes, mas nem por isso deixou de proporcionar óptimos momentos.

fotografia de Jan Rijk

O primeiro concerto do LeGuessWho? deu-se na Domkerke, uma das maiores igrejas de Utrecht; ficou a cargo da ONCEIM (l’Orchestre de Nouvelles Créations, Expérimentations et Improvisation Musicales) que se propôs interpretar uma composição de Stephen O’Malley (Sunn O)))). O ambiente austero e silencioso fez lembrar algo ritualístico, onde a tensão se acumula muito gradualmente, em lenta progressão. O som ecoa, um drone produzido por instrumentos acústicos, seja a percussão cuidada nos pratos e no gongo ou uma longa nota no violoncelo; um vai e vem em pequenos pulsos que se discernem na massa homogénea do som. O maestro, de olhos cerrados, sugere uma postura meditativa; de vez em quando, volta para dirigir orientações à orquestra, e pede, por gestos, sons mais encorpados de um dado instrumento, e grau a grau avoluma-se a massa, tensão que teima em libertar-se, que se constrói a partir de intuições delicadas. Já mais perto do final — abandonámos mais cedo para poder apanhar o concerto seguinte —, um conjunto de circunstâncias fez com que o som também se tornasse físico: ressoou de forma a que lhe sentíssemos a propagação, e nos envolvesse de uma forma mais completa. A ONCEIM interpretaria ainda uma outra peça, mais tarde, na mesma igreja.

fotografia de Jan Rijk

Mas, a caminho nos pusemos, e logo de seguida, na Janskerk, uma outra igreja de Utrecht — é um caminho que se faz facilmente a pé, embora a bicicleta seja o meio mais eficiente nesta cidade — teríamos o concerto de Colin Stetson. Figura proeminente da experimentação contemporânea, encontrou um nicho que lhe permite o contacto com os grandes nomes do indie actual; e enquanto figura em colaborações várias, monta a sua própria carreira a solo, em diálogo com o saxofone baixo, o seu instrumento de eleição. Assim, o que pretende explorar não é apenas a sua componente melódica: dedica-se também à textura do som, pelo caminho testando os próprios limites do instrumento. Ora, em breves momentos, vimos uma fila a formar-se à porta da igreja — que chegara entretanto à sua lotação máxima — e Stetson ouvia-se cá fora apenas quando a porta se abria, quando algum desistente abandonava a sala para logo depois outra pessoa entrar. E nestes momentos não se ouvia o saxofone, mas o retumbar percussivo das colunas, um potente pulso imediatamente reminiscente da música de dança. De resto, confirmámos a suspeita quando finalmente conseguimos entrar: sozinho em palco, baseia-se em construções cíclicas, entre sopros, percussão e vocalização  — tudo isto no saxofone; tudo isto, provavelmente, sem overdubs —, donde sobressai uma matriz afecta ao techno e às suas intrincadas relações rítmicas. O público distribuía-se ora sentado ora de pé, nas galerias  contíguas, e deixava-se estar. E em alguns momentos, quando o som reverbera na estrutura da igreja, há uma aproximação da música de Stetson ao seu máximo potencial: alta, grave, e física; uma construção que é, em simultâneo, hipnótica e tremendamente estimulante. 

fotografia de Tim van Veen

Voltámos ao TivoliVredenburg, que é uma espécie de base onde tudo acontece: um edifício dedicado onde se encontram cinco das salas que albergam os concertos do festival, localizado oportunamente em frente à estação de transportes de Utrecht. Na sua Grote Zaal, esperávamos um dos concertos deste ano: os Art Ensemble of Chicago, grupo de referência no âmbito do jazz, na sua vertente mais selvagem e exploratória, desde os anos 60. Entretanto, o grupo já sofreu várias alterações — são vários anos de carreira —, tem obra discográfica incontornável e um legado de respeito no mundo da música. Mas rapidamente percebemos que têm, no presente, muito para nos dar. Em palco, são sete músicos, e a presença de Roscoe Mitchell, no saxofone soprano, é uma espécie de eixo a partir do qual tudo revolve. E de resto… é jazz: ora todos em conjunto, ora com destaque no seio da performance, há uma envolvência e um sentido de comunidade contagiantes. E, mais ainda na vertente do free jazz, a liberdade é exacerbada, e tudo se torna muito mais imprevisível. 

fotografia de Ben Houdijk

Até ao final do dia, apenas ansiávamos pelo concerto de Yves Tumor: até lá, passámos por uma série de outros concertos. Os Yonatan Gat & The Eastern Medicine Singers estavam a dar conta de uma sala Pandora repleta; e Kaja Draksler & Terrie Ex colaboraram, a primeira ao piano preparado e o segundo, bom, a violentar uma guitarra contra o chão e de várias formas, na sala Hertz, um recinto mais intimista (e ambas dentro do Tivoli); e antes de abandonarmos definitivamente o Tivoli, ainda presenciámos a festa que os BCUC faziam na Grote Zaal. Nos outros recintos, passámos ainda um pouco pelos Sun Foot, na EKKO (uma espécie de bar + discoteca, espaço agradável), um trio que juntava as dinâmicas energéticas do punk mas dotados, cada um dos membros, de outras sensibilidades musicais (a percussão fora da tradicional bateria, por exemplo).

Mas, finalmente: Yves Tumor. Uma vez mais, sentimos o pânico de ver uma fila para entrada no recinto, sobretudo dado que se aproximava a hora do concerto. Este seria no BASIS, um recinto cuja entrada fica ao nível da água num dos canais centrais de Utrecht. Ora, o BASIS é uma discoteca, estreita, baixa, mas comprida, e nos primeiros momentos não tínhamos qualquer indicação de que o concerto fosse realmente ali — e não numa outra sala qualquer dentro do estabelecimento. Mas eventualmente, ouvimos a melodia familiar de Licking An Orchid, faixa do seu novo disco Safe in The Hands of Love; e embora não o víssemos (ou apenas o víssemos a espaços), sentia-se a sua presença — como se a qualquer momento pudesse irromper da massa de público e surgir logo à nossa frente. A sua música beneficiou da claustrofobia imposta pelo recinto e assentou-lhe como uma luva. Bem apertada. E depois, fomos para casa: sexta-feira seria dia de muita acção, com mais palcos a obrigar a uma melhor gestão do tempo.

fotografia de Tim van Veen


sobre o autor

Alexandre Junior

Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)

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