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Quarto e último dia. Com o Domingo, vem a lassidão habitual; a cidade está mais parada, mais vazia, e outros carregarão as suas energias para uma semana de trabalho que se aproxima. Até isso se notou no Le Guess Who?: neste derradeiro dia, as salas estão visivelmente menos cheias, e nota-se uma maior fluidez na circulação entre o Tivoli. No entanto, o nosso dia não começou aí: começou numas panquecas comidas à beira do canal, antes de um longo passeio que terminará à porta do Theater Kikker. O primeiro concerto do dia será o de Sourakata Koite, músico senegalês cuja carreira ganha um novo fôlego após reedição nessa magnífica instituição que é a Awesome Tapes From Africa. Pelos vistos, Sourakata tem uma ligação à Holanda — onde gravou o seu disco en Hollande, em 1984 — e o seu regresso aos palcos foi assinalado com pompa e circunstância. Preludiado por um elemento da organização, que contextualizou toda esta história, quando Koite chega a palco já tem o público rendido à sua presença, ciente de ser este um momento de celebração tanto para eles como para o próprio artista. E Koite, munido do seu kora, lança-se às canções, que são todas instrumentais excepto um par que se acompanham com a voz, numa mostra de técnica fascinante num instrumento que tem vindo, com o auxílio da internet, a ganhar mais projecção a nível mundial. Entre músicas, abordava o público em francês, e contava histórias das gravações, ou histórias sobre a origem do instrumento, ou histórias da sua terra natal, Senegal; por tão pouco estar habituado aos trâmites de um concerto desta natureza, sentiu-se realmente ser uma ocasião especial, uma pequena celebração da sua carreira e da música — não só a sua, mas a música do kora, a africana, e, pois claro, a música em geral. Não teríamos melhor início para este dia de outra forma qualquer.
Depois, de volta ao Tivoli — a cidade teria menos concertos em geral, mas o Tivoli continuaria a funcionar com as suas cinco salas. Logo elas 18h, os primeiros concertos começaram quase em simultâneo: na Grote Zaal, o palco seria entregue a Circuit des Yeux, artista que começou a sua carreira há relativamente pouco tempo, mas rapidamente percebemos não ser registo que nos interessasse — cantautora à guitarra com uma banda e cordas, mas nada tremendamente estimulante; por isso, subimos à altura da Cloud Nine, escadas sem fim até chegar a esta magnífica altura (e um pequeno à parte — logo por baixo deste vão de escadas, uma banca de comida vegan fazia os seus refogados que nos conquistaram no derradeiro dia; foi a melhor sopa, de coco, cenoura e gengibre, que algumas vez comemos em festival, e hambúrguer idem), mas íamos, então, a caminho de Chihei Hatakeyama, músico japonês cuja carreira temos vindo a acompanhar desde que, timidamente, vai lançando os seus discos de ambient alimentado a field recordings; e, por isso, havia a natural curiosidade de ver como se comportaria ao vivo. Nesse concerto, que muitos acompanharam sentados no chão, serviu-se da guitarra como principal fonte de som para as paisagens que construía, delicadas e quietas; um retiro que subscrevemos largamente, mas que teríamos deixado um pouco mais cedo se isso significasse mais tempo na sala Pandora, com Tirzah, de quem ouvimos apenas uma derradeira canção. Quanto a este último nome, sabemos-lhe apenas o seu disco de estreia, Devotion, e a particularidade de ter sido integralmente produzido por Mica Levi, que a acompanhou em palco, além de um outro músico que não reconhecemos. De postura serena em frente ao microfone, debitava sem floreados a voz que a sua música necessita; tudo o resto vem com a mesma qualidade de parcimónia, quase minimal, e foi um bonito momento que ilustrou um dos mais encantadores e interessantes (deve-se a Mica Levi!) discos de 2018.
Seguir-se-ia Beverly Glenn-Copeland, um acontecimento promovido por Devendra Banhart e que foi amplamente aproveitado pela organização do festival — basta pensar que, nesse mesmo Domingo, Beverly participou numa conversa à margem do programa principal dos concertos —, e, de resto, o facto de se assumir como artista transgénero encaixa na perfeição num festival que prima pela multiculturalidade e, além disso e porventura sobretudo, pela pluralidade de discursos.
Um nome desconhecido da larga maioria, o festival promoveu-o como participante de uma estética algures entre Joni Mitchell e Tim Buckley, um enquadramento sobremaneira ambicioso e, quiça, até injusto. Iniciou o concerto com Color of Anyhow, belíssima canção que abre o disco que tem o seu nome e que revela do que é feita a sua música: arranjos cheios, de uma simplicidade clássica — daqui, talvez, as associações a Joni Mitchell, como poderiam ser também a Van Morrison, por exemplo, ou a toda uma estirpe da folk passada —, interpretados por uma banda que supomos ter sido recentemente formada; a sua voz vai e vem, frágil e feminina, e sai a tremenda ovação quando termina esta primeira incursão na sua discografia. Adorna os momentos entre canções dirigindo-se ao público — “falo muito, confesso, e acabo por nunca tocar tanto quanto queria” — mas isso não parece ser problema aqui, numa sala Hertz lotada e rendida à simplicidade da personagem.
Foi a última paragem convencional antes de uma série de espectáculos bem mais experimentais. De regresso à sala Cloud Nine, seria a vez de Eartheater tomar conta do espaço. A nova-iorquina tem ganho espaço em alguns espaços jornalísticos de referência, devido aos dois mais recentes trabalhos, mas pela estética da sua música, que é confusa e que convoca vários elementos em simultâneo sem nunca se revelar completamente, não esperaríamos o que vimos, uma espécie de completa antítese visual ao seu som. Estranhámos uma mulher sozinha em palco, exposta, a servir-se do seu corpo como componente do espectáculo; a sua voz está altamente processada, enquanto se acompanhava de uma coreografia inusitada, talvez violenta, não necessariamente sexual embora lhe possamos ler um certo poder, ou emancipação, femininos. É difícil estabelecer uma relação entre o que ali aconteceu e o que tem registado nos seus discos, pela intensidade crua que imprimiu à performance; mas ouça-se C.L.I.T., do novo disco Irisiri, e está ali quase tudo: o desconcertante trabalho vocal, a construção sónica digital, violenta e vanguardista (assoma à memória elementos importantes de Fever Ray, por exemplo). E a óbvia sexualidade no título, claro, mas tanto mais: a dada altura do concerto, serve-se duma lanterna para encandear o público, e percorre lentamente várias caras com o foco da luz, observando de volta. Nesta altura, ocorre-nos um paralelismo com o conceito de concerto pop, a propósito da voz e da coreografia, mas o foco que nos invade inverte-o, como se fôssemos agora objecto do espectáculo em vez de vorazes, sôfregos consumidores — como se a Britney Spears, perdoem a comparação, tivesse abraçado a sua fase mais decadente, em conflito aberto com a indústria da música, e a virasse contra si própria. Estas leituras, claro, são apenas interpretações, ou ideias, que estão contidas na sua música, mas não a esgotam: há muito por onde pegar no que Eartheater nos dá.
Conseguimos, ainda, passar pelo final do concerto de Greg Fox Quadrinity, que terminava de forma apoteótica com a percussão de Greg em amplo destaque; e semelhante se passou com os Irreversible Entanglements (feat. Pat Thomas), grupo com a voz de Moor Mother, que levaram a cabo uma demonstração de free jazz moderno. Ambos nos deram a sensação de poder mergulhar nos seus respectivos universos e habitá-los; apreender uma nova linguagem. De resto, é o tipo de registo que faz muita falta em vários dos festivais por cá: coisas arriscadas, fora do comum formato pop/rock, que desafia, e inova. Enfim! Pelo meio, houve Lucrecia Dalt, concerto ao qual assistimos na sala Hertz. A artista colombiana habita um curioso espaço: durante imenso tempo, o seu nome chegava-me imbuído de um certo mistério, associado a termos e linhagens, e nunca o concretizei — adiava permanentemente o momento de finalmente o descobrir. Satisfaz-me que o tenha feito apenas no Le Guess Who?. Em palco, encontramo-la sentada, rodeada de uma série de instrumentos — um teclado à sua frente, uma espécie de sintetizador modular à sua direita, e mais coisas —, formando-se uma espécie de fronteira, ou um pequeno casulo, que a separa fisicamente de nós. Esta ideia é especialmente apropriada quando consideramos onde a sua música se move: composições delicadas, com recurso a vários loops modulares, e samples de proveniência indeterminada. O seu último disco Anticlines está pejado de construções instrumentais neste registo, mas Lucrecia também se entrega à voz, num registo de spoken word e derivados, e é aí que a temos próxima, ressalvadas as devidas diferenças, de Laurie Anderson, ou, duma outra forma, de St. Vincent: nos seus momentos mais estruturados, namora à distância os encantos da pop, e consegue, logo de seguida, transportar a sua música para outros campos mais exploratórios, carregados com o seu toque muito próprio.
Isto tudo no Domingo, o último dia do festival. O corpo já vacilava, a pensar na semana de trabalho que viria sem tardar, e aguardávamos um último nome, derradeiro espectáculo que tudo teria para marcar o dia e toda a experiência. Talvez o tenhamos guardado em demasiada expectativa, é certo; mas não será para menos. Pan Daijing, artista de origem chinesa, tem vindo a participar em iniciativas que nos chamam a atenção: primeiro, conhecemo-la na compilação Mono No Aware (onde se incluía também Yves Tumor), e mais tarde em colaborações vocais com Amnesia Scanner, que beneficiou imensamente da sua intensidade. Entretanto, chega Lack, o seu LP de estreia, espécie de ‘ópera’, nas palavras da própria, e identificamo-nos com o termo na medida em que é um acto contínuo, no qual se deslinda uma narrativa em forma livre. E desde tudo isto, mitificámos a artista e queremos entendê-la melhor; ultrapassar barreiras de linguagem, concretizar o noise de Lack, receber a mensagem. Quando finalmente subiu a palco, turvou-se a linha que define a performance: Daijing interpela o seu público directamente para lhes explicar estar cansada das viagens; não tocará nada, ao longo de todo o espectáculo, “portanto escusam de tentar descobrir de onde vem o som que ouvem”; e antes de chegar ao primeiro momento do que se poderá considerar a sua música, já decorreram cerca de dez minutos de um concerto que mais parece uma ted talk. A pouco e pouco, sente-se uma personagem a formar-se, enquanto narra uma macabra história que envolve a sua mãe, uma investigadora na área da biologia, e os seus alunos — que repetem uma experiência em coelhos, partindo-lhes os ossos recorrentemente para medir o tempo de reconstrução do seu organismo; e enquanto isto, temo-la no centro do palco, acocorada e envolta sobre si própria, a cantar uma canção da sua infância, a voz a ressoar na sala sozinha, momento solene, mas ligeiramente desconfortável, que precede uma apresentação em vídeo que complementa o espectáculo; mais tarde juntar-se-á uma coreografia, cantos, uma outra pessoa que invade o palco. Para não desvirtuar a surpresa — até porque não é possível representá-la, por escrito, com fidelidade — abstemo-nos de comentar mais sobre Fist Piece, o nome desta performance que Pan Daijing tem vindo a apresentar nos últimos tempos. Mas reforçamos a recomendação de a ver quando possível, e acompanhar o seu trabalho que se expande numa expressão verdadeiramente multidisciplinar.
Antes da despedida, passámos ainda pelo concerto de Swamp Dogg na sala Ronda, em palco com uma banda recheadíssima e com uma energia que não condiz com a sua idade septuagenária; e depois, acabou de vez o Le Guess Who? de 2018. Foram quatro dias intensos, do qual levamos óptimas experiências; Utrecht ganhou uma nova camada que lhe foi sobreposta pelos itinerários deste festival. Possivelmente, temos agora um novo padrão a partir do qual vamos julgar qualquer outro evento deste género nos próximos tempos. Por tudo isto e pelo que relatámos nos dias anteriores, não podemos deixar de recomendar que, no próximo ano, entre 7 a 10 de Novembro de 2019, passem por Utrecht outra vez. Adivinhem porquê?
Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)