Reportagem


Little Simz

A coroação abençoada pela chuva de Little Simz.

Praia Fluvial do Taboão

18/08/2023


© Hugo Lima - https://www.facebook.com/HugoLimaPhotography

Depois do balázio que foi o concerto de Black Midi tornava-se difícil aturar a chuva que caía com crescente insistência, mesmo para os mais veteranos; já se sabe que é um clássico courense, mas não precisávamos dela no cartaz. Só mesmo a continuação da sequência de concertos memoráveis poderia tornar a chuva aturável. E foi mesmo isso que aconteceu no concerto de Little Simz.

Nascida Simbiatu Abisola Abiola Ajikawo, construiu ao longo de uma hora o seu elo para a cadeia de concertos para mais tarde recordar desta edição de Paredes de Coura. A rapper (francamente, um termo redutor para aquilo que criou, não obstante tratar-se de algo estruturalmente hip hop) e actriz inglesa de ascendência nigeriana chega ao Minho num momento artístico formidável, de plena consagração – ao ponto de, se lhe der na real gana deixar a música (bater na madeira), ter já um corpo de trabalho de qualidade inegável e digno de estudo, capaz de figurar nos anais de meio século de hip hop.

Engravatada num bomber e de óculos escuros reminiscentes do saudoso Biggie Smalls, só precisou do microfone e do seu carisma para construir um abraço mútuo (e molhado) e literal com um anfiteatro natural cheio de quem não arredou pé. Para mais que este foi o seu último concerto da época de festivais, o que poderia ser sinal de cansaço e de actuação mais fraca, mas nem isso demoveu a britânica.

Os seus dois mais recentes álbuns, Sometimes I Might Be Introvert (2021) e No Thank You (2022) são trabalhos magníficos e catapultaram-na para o topo dos rappers contemporâneos com assunto. No comparativo com rappers britânicas de antanho, como Miss Dynamite, Little Simz é infinitamente superior.

Ambos contam com colaboração de Inflo, membro de Sault, eles próprios um colectivo que tem dado ao éter algumas das mais interessantes ideias da música popular britânica recente. Prestar atenção às batidas e samples de Little Simz é embarcar numa viagem de originalidade e versatilidade, sempre com um piscar de olhos ao passado.

Sem piedade, lança-se a No Merci, portento de auto-confiança introspectiva; é toda uma mensagem positiva que coloca o público na mão da artista de flow e sorriso fáceis. Surpreendida pela moldura humana, agradece o contributo das pessoas que a ajudaram a trilhar o seu caminho, incluindo os fãs – guarda todos, um dia construirá uma neo-arca de Noé para fazer face a esta chuva.

Os samples e arranjos (ecos de David Axelrod e Joe Hisaishi) e a narrativa altamente pessoal de I Love You, I Hate You não caíram em saco roto. Simz circula pelo palco como se estivesse a debelar um dilema da vida no meio da sua sala, fazendo um prós e contras do amor/ódio em relação à figura do pai. O efeito final é incrível, a verdadeira tormenta da noite. Que se lixe a chuva.

Numa altura em que manifestações identitárias são levadas a um extremo demagógico, histérico e pleno de ignorância (quando não contraproducente), Simz aborda essas questões com elegância e vigor em X. Jogos de palavras, eufemismos e fé em Deus, sem necessidade de levantar a voz – como tantas vezes sucede no hip hop ao vivo e, como na vida, para não perder a razão.

A volta por No Thank You continuou para novo apeadeiro: Heart on Fire. Hino contra a solidão, bandeira pela verdade nas amizades, pela bênção da vida e contra alcoviteiros e salafrários, culminou numa ida de Little Simz até às grades, para um abraço literal ao público, que ela até pode estar na estratosfera em termos artísticos, mas o coração bate como o dos demais humanos.

E como contadora de histórias e de estados de alma que é, tem também algo sobre os tempos em que a vida era mais simples, a luta mais desigual e a sua arte era um embrião, como narra em 101 FM. Dança pelo palco fora, sorri e puxa pelos trauteios da plateia, que praticamente não parou de saltar desde que o concerto começou. Euforia partilhada.

A presença de Biggie Smalls não se fica apenas pelos óculos de Simz. Há uma autêntica antítese de Venom em relação a Suicidal Thoughts: a primeira reage como posição de força e de luta pela sobrevivência à depressão terminal e consequente suicídio da segunda.

Um bom exemplo da completude e consistência da obra de Little Simz? Gorilla, cuja batida não destoaria em People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm de A Tribe Called Quest, essa obra-prima de certa maneira iconoclasta, como Simz também o é, porque só alguém de tal estirpe pega num guitarrista e num baixista e mete-os a tocar os primeiros acordes de Maria de Carlos Santana antes de desatar a rappar.

Para além de ser mais uma canção na qual o seu íntimo é exposto de peito feito, há também versos de evocação de grandes que já partiram (“[…] rest in peace to Mac Miller […]”) e de comparação, através de inteligente jogo de palavras à maneira de Rakim, com outro vulto do hip hop britânico, Mike Skinner de The Streets.

E a chuva? Foi de pára-arranca. Coisa pouca para Little Simz, que é o Ayrton Senna do rap à chuva. Como estava de visita, atirou: “imaginem que uma amiga vossa de Londres vem a Portugal e quer divertir-se. Como é que fazemos?”. Damos tudo, obviamente.

Falávamos, no início deste texto, da real gana de Little Simz. A introversão desafiante atinge o apogeu em Point and Kill, mescla hip hop-afrobeat na qual se assume como uma confiançuda imparável que não deu corda ao Diabo.

Em matéria de poderes espiritual e secular, se Jessie Ware se tornou na Nossa Senhora de Coura, então Little Simz saiu dali como a rainha D.ª Simbiatu, de coroa reluzente abençoada pela chuva, cujas rimas e batidas são o seu ius imperii. Decrete-se que foi um concerto para ficar na História de Coura.

Iconoclastia através da versatilidade de uma artista que de pequenez só a tem no nome, porque na arte é grande. Dêem-lhe a coroa, porque reino já tem.


sobre o autor

José V. Raposo

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