//pagead2.googlesyndication.com/pagead/js/adsbygoogle.js
(adsbygoogle = window.adsbygoogle || []).push({});
Alturas houve na vida onde me perguntei sobre os motivos pelos quais vale a pena andar neste mundo; e quase sempre encontrei a resposta num álbum de Ludovico Einaudi. É impossível exagerar a influência que o pianista italiano tem na minha vida. É raro encontrar alguém que consiga traduzir musicalmente o que orbita num pequeno planeta a que chamamos ser, e em cada nota das suas composições reencontro-me, até mesmo ao que não sou mas devia. Para mim, um concerto de Einaudi não é simplesmente sentar-me numa cadeira com dezenas de pessoas à volta e olhar para um palco onde meia dúzia de músicos arrancam vida a objectos inanimados. É entregar-me a uma transcendência que, em não raros momentos, mexe literalmente com as minhas funções físicas básicas, como a respiração. Garanto que este é um “literalmente” merecido e, pleonasmo óbvio, literal. Alerto desde já o leitor para isto, antes de passar ao parágrafo seguinte.
Ludovico Einaudi chega a Portugal depois de uma pausa na digressão europeia que o levou a percorrer o norte do continente em salas esgotadas, fenómeno que se repetiu nos dois concertos dados no nossos país (que esgotaram em Janeiro) e que se repetirá nas datas marcadas até dia 18 de Maio. Chamar-lhe de fenómeno é supérfluo, e intérprete de música clássica um erro. É uma etiqueta com a qual ele não se identifica, aliás. Os seus últimos quatro álbuns têm marcado precisamente um desvio desse género musical e coincidiram com o seu período de maior popularidade. Em parte, tal deve-se à utilização da sua música em filmes, séries e anúncios, também, principalmente no norte da Europa e da passagem da sua música em rádios generalistas, algo que possivelmente ajudou a que nos deparássemos com um coliseu à pinha para vê-lo.
Centrada no último álbum “Elements”, saído em Outubro do ano passado, esta digressão faz acompanhar Einaudi de cinco músicos: três multi-instrumentistas, um violoncelista e um baixista. Tal nunca se torna um problema no concerto, mesmo nos temas que em gravação recorrem a uma orquestra: cinco acompanhantes musicais e um piano preenchem bem o cenário sonoro e isso nunca afecta a raiz das músicas. Iato faz também com que quem se sentou no Coliseu do Porto tenha assistido a uma reinvenção em todos os temas tocados pelo italiano, com nenhum deles a ser igual ao que se ouve em álbum. É aliás uma constante nos seus concertos: temas tocados em 2013, por exemplo, foram alvos de uma revisita neste concerto, e diferente da que se ouvira, que por si só já se afastava do que existe em disco. De certa forma, é como presenciar um qualquer encantamento de alquimia, de um homem pouco acomodado que inventa ao vivo com o mesmo conforto com que se senta num banco, de costas para o público, e coloca em notas musicais conceitos abstractos como o Tempo, a Matemática, o Universo ou os Elementos (temas centrais nos seus últimos álbuns). É transcendente e, num momento em particular, verdadeiramente cósmico. As projecção de elementos visuais num ecrã reflecte estes temas e o jogo de luz, que se torna cenografia, amplifica as emoções, pela utilização da cor e da contra-luz de uma maneira simples, mas bastante expressiva. Um pormenor em particular, levou a um suspiro de admiração colectivo em toda a sala que foi audível mesmo por entre a música.
O concerto dividiu-se em duas partes: numa primeira foram explorados alguns temas de “Elements”: abriu-se com “Drop”, onde a sua parte electrónica e experimental foi mais focada, depois com “Night”, “Petricor” e “Twice”, a intensidade da ligação entre o pianista e a sua pequenina orquestra fez levitar o Coliseu, e a certo ponto, interferiu com a minha capacidade de segurar o fôlego. Um dos pontos altos desta primeira parte foi “In a time lpase”, um daqueles temas que parece não ter início ou fim, tendo sido agarrado algures num monte de poeira eterno para figurar numa colecção musical, afastando-se simplesmente em vez de terminar. Um pequeno intervalo só com alguns temas tocados ao piano (com o recuo aos seus primeiros álbuns e também a “Una mattina”), e o regresso fez-se com “Fly”, tema tornado popular no filme Untouchables, e que nos segundos finais do tema, um violoncelo levou-me a olhar para o tecto, quando replicou na perfeição o guincho de uma gaivota. Depois de mais um desvio por “Elements”, Einaudi encerrou com “Experience”, para voltar num encore onde nos brindou com “Divenire” e “Nightbook”, já habituais nos seus concertos, e encerrar com “Choros”, de um álbum de música tradicional italiana lançado no ano passado. Nunca destoou do que ficou para trás, já que as suas composições, ao vivo, misturam, influências diferentes que nunca se atropelam, e fluem com a mesma naturalidade com que o rio Douro atravessou o Porto nessa noite.
A acústica do Coliseu do Porto serviu na perfeição todos os humores musicais da noite, desde o minimalismo de um piano solitário contando histórias de surpresas em esquinas até à sinfonia sonora de, por exemplo, “Experience”, que quase fez levitar as cadeiras da sala. Mesmo alguns raros espectadores cujo comportamento não foi o mais correcto (consultando o telemóvel, chegando atrasados e procurando os seus lugares certos a meio do espectáculo) não puderam estragar a ligação óbvia que existiu entre uma audiência em comunhão com Einaudi. A sua atitude é de uma calma zen que se associa a um pianista; no entanto, nos poucos momentos em que se virou para a plateia, agradecendo ao público, havia uma genuína gratidão na sua postura, que cria uma ligação emocional e pessoal com quem o vê. Cada aplauso parecia ser o final, tal o entusiasmo, e ninguém estranharia se estivéssemos noutro tipo de espectáculo mais popular. Esta cumplicidade existiu também entre Einaudi e os seus músicos: num determinado momento, o grupo entrega-se a um pequeno interlúdio de experimentalismo com instrumentos musicais bizarros, onde uma melodia de quatro notas de piano sustenta todo o momento. Estavam todos visivelmente divertidos com a situação, a sua paixão pela música passando para a audiência, e é desse encontro que se faz também o sucesso dos seus concertos. Por outro lado, trouxe um certo encanto infantil de descoberta e curiosidade pelos sons de objectos diferentes.
Para mim, encontrar-me com Einaudi é sempre voltar a casa; vê-lo ao vivo é habitar nela de pleno direito. Independente do meu próprio gosto pelo pianista italiano, é um concerto para qualquer um que seja admirador por quem se quer surpreender por um daqueles artistas que desafia definições simples. Quando cruza estruturas de música popular com o rigor e a fantasia da composição para orquestra, convida um público que cada vez é mais numeroso a ser exigente com o seu gosto e com o mundo, e torna, de facto, a cultura popular um bocadinho mais complexa e interessante. O Porto aplaudiu-o ontem, Lisboa vai recebê-lo hoje, previsivelmente para reagir da mesma maneira.
Eu simplesmente agradeço-lhe um mundo inteiro de som, que se prolonga para lá das duas horas que passei numa sala fechada. Habito nele, com outros, e Einaudi actua ao vivo e a cores sempre que quero ouvi-lo.