Reportagem


Maria Reis + Putas Bêbadas + Tradição

Uma amizade já longa que foi partilhada com todo o gosto.

Galeria Zé dos Bois

28/01/2023


© Simão Simões

Assistir ao germinar e desenvolvimento de algo durante alguns anos e ver que nunca parou de evoluir é praticamente um prazer da vida. A Cafetra Records, grupo de amigos que é também uma editora, é prova evidente disso. O selo lisboeta anda há cerca de uma década a mostrar por cá e lá fora a força da sua originalidade e do seu humor, tornando-se referência fundamental na música popular nacional em geral e no som de Lisboa em particular. Maria Reis, força motriz da Cafetra desde o início (primeiro com as Pega Monstro, com a irmã Júlia e mais recentemente a solo) e Putas Bêbadas, banda emblemática da editora, andaram a fervilhar de ideias no último ano (ambos editaram discos óptimos em 2022) e entenderam por bem – em mais uma manifestação da iconoclastia da editora – unir forças em palco e dar-nos duas coisas: amizade e música.

Tendo por palco a Galeria Zé dos Bois, um dos poisos dos Fetras, intitulou-se esta mescla como Maria Putas Reis Bêbadas. Por outras palavras, juntou-se o útil ao agradável, prometendo ser mais uma manifestação das amizades e cumplicidades que compõem a Cafetra. A tarefa de abrir a noite coube aos Tradição, enigmático duo que se presume (ilidivelmente) que seja de Lisboa, mas que poderá muito bem ser de uma outra dimensão (o mais provável).

A dupla não perdeu tempo a estabelecer-se como uma curiosa central de uma série de referências numa roupagem aparentemente simples: berreiro meio harsh noise, meio hip hop experimental com uma guitarra pelo meio ou não fosse esta noite uma de comemoração de alguma da melhor música nacional de guitarras dos últimos anos. Dúvidas houvesse sobre ao que vinham os Tradição e estas ficariam desfeitas ao fim de minuto e meio. O Inferno precisa de batidas.

De facto, não foi preciso muito para que a dupla incendiasse a mais mítica sala do Bairro Alto. Um computador, uma guitarra, um microfone, ganza e uma garrafa de J&B, combustível para uma desenvoltura paulatina, de contar contos de quem não bate bem da cabeça (palavras dos próprios).

Num flow à Agostinho Figueira e em batidas, samples e loops em conformidade com contemporâneos (do outro lado do Mundo) como os Dos Monos, os Tradição levavam a água ao seu moinho. As rimas saídas do PA do aquário da ZDB são lanças de entropia numa violência batidística que pouco ou nenhum paralelo tem por cá. Com um MC de microfone na mão e cinzeiro na outra, este contendo as cinzas de muito cadáver, humano ou não.

O Pirata de Tradição é aquele que se move num mar em noite escura, noite essa que mais não é do que quem ficou preso no estômago de uma jibóia.

Nesta Santíssima Trindade doom metal-Sleaford Mods-dälek é condensada toda a dissolução de dogmas, numa paisagem artística e política que se comeu a si própria no meio da demagogia e da desonestidade intelectual e eis que aparece a dupla para rimar e dar no noise no meio dos escombros para gáudio dos sobreviventes – evitando o cliché gastadérrimo dos punks niilistas e anarquistas (hoje em dia ficam ofendidos com nomes de bandas, a tradição já não é o que era), felizmente. Mas serão os Tradição os representantes de um cinismo hipster, daquele em voga há demasiado tempo?

A resposta é negativa, que têm demasiado sangue na guelra para isso, até porque “têm mais dentes do que parentes”. Se Pessoa, via MC Álvaro de Campos, estabeleceu que todas as cartas de amor são ridículas, então os Tradição declamam que há que trocar cartas de amor com quem se odeia, porque quem nos morde já a gente mordeu. Isto vindo de dois artistas que bateram recordes de agradecimento aos aplausos (merecidos) do público.

Versos como “Deus dá-me um sinal, Facebook dá-me um smile” são uma súmula/grito no labirinto de anomia e de desespero intelectual em que muito boa gente se encontra. Conclua-se que no meio dos escombros é possível criar, como Tradição provaram.

Da preparação do palco ao começo do prato forte da noite foi um tirinho de minutos. Era hora de Maria Putas Reis Bêbadas, esse mashup muito aguardado. A amizade subia ao palco.

Com Um Ai (de Chove na Sala, Água nos Olhos), original de Maria Reis, foi dado o início à instância, relação triangular entre Maria Reis, Putas Bêbadas e todos os presentes. Ao marialvismo da versão original adicionou-se rockalhada da boa, daquela que nos fez olhar para lá e concluir que, passe mais um trocadilho com a letra, é melhor sentir o RUOCK do que esquecer. Golo de bandeira.

Em seguida, embraiagem a fundo para Nível Lounge, do grandioso disco homónimo, um dos melhores álbuns nacionais de 2022. Miguel Abras entra a rasgar em carga de baixo, acompanhado das tropas em palco e no público, já suado e calejado na pancadaria. Uma jarda bem pesada, para lá da meia grama e onde todos dão a cara pelo Inferno.

Às Pega Monstro se regressou com Braço de Ferro. O lo-fi dos tempos da dupla Maria-Júlia Reis deram lugar a uma prolação de vibes de Modern Lovers, com destaque para a muralha de ritmo de Íris Neves e Maria Reis e para o belo efeito do trio Reis-Dória-Abras na voz, autêntico multiplicador de força.

Dali se partiu para uma magnífica versão de Puta da Bófia. As engrenagens da máquina carburando em pleno, chegando ao ponto de o quinteto parecer quase enternecedor naquele trio de ataque de Fenders (mais um bocado e aparecia o Leo Fender a dizer que criou as Stratocasters para os Fetras), como se fosse um The Last Waltz entre as ruas da Atalaia e da Barroca, mas sem despedidas, só a festa de boa gente que vai em frente tocando.

Na noite em que se soube da morte de Tom Verlaine, sem o qual todos os que pegaram numa guitarra nos últimos quarenta anos para fazer algo diferente não teriam essa mesma diferença no seu ADN artístico, o tríptico de guitarras Maria Reis, Íris Neves e João Dória deu uma excelsa prelecção do que é uma guitarra-ritmo aventureira. As jams que foram desenvolvendo foram disso cabal exemplo, já se afastando da relativa simplicidade das composições de estúdio e dando corpo a algo que bem merecia ser gravado em boas condições, para memória futura.

Com o libelo acusatório “Oh meu Deus, tu não sabes nem sonhas o que é ser gente…” de Arco da Velha estava na cara de que a noite estava definitivamente ganha. Aqui foi Maria Reis a ampliar e a elevar a canção, sem esquecer João Dória, que fez as vezes de guitarra solo e, qual Joe Perry de Putas, foi assediado pela própria banda, que pelos vistos não gosta de guitarristas de camisas abotoadas – nem o público mais afoito.

Até aqui, o mashup resultou em pleno: as canções de Maria Reis (e das Pega Monstro) ficaram a ganhar com o fôlego instrumental providenciado por Putas Bêbadas e estes lucraram com o contributo melódico e instrumental daquela, que lhes deu um fundo bem diverso do de estúdio.

Nestes dias em que passa por cá aquilo que se entende por Black Flag em 2023 (banda a solo de Greg Ginn em pleno exercício dos seus direitos de propriedade intelectual, dir-se-á), Putas Bêbadas representam bem mais o que é o punk de hoje em dia do que muito dinossauro que ficou preso nos grupos de antanho e nas mediocridades nacionais, em particular nos dois “ii”: iconoclastia e independência.

Não podia faltar Sandro e Sandra, diálogo imaginário intergeracional entre Putas e os punks de antanho, os punks do Chiado e garimpeiros da prata castanha, cujas veias gangrenosas deram origem aos riffs de hoje. Nota para Leonardo Bindilatti, casa das máquinas que, em trama com Miguel Abras, providenciou ritmo sem mácula.

Esplendorosa versão de Fada Deste Lar, composição nas melhores tradições do rock tasqueiro nacional. Versos que podiam ser de Luiz Pacheco sobre a queca escatológica numa floresta que podia ficar num terreno de Nel Monteiro, faltando apenas um clip para Beavis e Butt-Head verem, que Putas podiam ser a banda sonora definitiva das suas vidas. Punk lo-fi é pirilau voador e cueca para o lado.

Houve ainda tempo para uma perninha de Tradição ao microfone para o mashmashup, porque já se tinha saudades deles.

Remate com encore de uma canção só com Areia da Praia. Não sabemos o que os convivas tinham nos casacos, mas de ouvidos e alma cheia todos ficaram, dane-se o frio.

Foi não só uma noite para continuar a apresentação de Nível Lounge e para confirmar que Maria Reis tem já de constar nos nomes de topo dos cantautores nacionais, mas também de rememoração do barulho bom que há cerca de uma década anima esta coisada toda. Desde o lo-fi de O Juno-60 Nunca Teve Fita e o noise de Jovem Excelso Happy até Benefício da Dúvida e Nível Lounge, um caminho bem mais longo do que parece foi percorrido por Maria Reis e pelos Putas Bêbadas – e quem os acompanha ouvindo-os há uma década pôde testemunhar tal facto.

E, bom, testemunhar a amizade e ser parte nessa partilha vale sempre a pena. Amigos deixam amigos ouvir malhões e vida longa à Putaria (o saudoso Mr. Catra não diria melhor).

Sempre a atravessar fronteiras (artísticas e geográficas), com o humor, a criatividade e a garra a que o gang da Cafetra e quejandos nos habituou, Maria Reis e Putas Bêbadas são já comida de conforto musical. Porque ser o futuro há dez anos é ter eternas saudades dele.


sobre o autor

José V. Raposo

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