Reportagem


Mark Knopfler

A despedida de um discreto e virtuoso mestre dos palcos

Altice Arena

30/04/2019


© Derek Hudson

Muito boa gente teve a sua primeira introdução a música de qualidade com os Dire Straits. Algures em 1996 ou 1997, este escriba viu o videoclip de Sultans of Swing (na MTV, VH1 ou coisa que o valha) e ficou siderado com o dedilhar de Mark Knopfler e aquele par de solos, tão crua e simplesmente retratados no dito vídeo; tendo já ouvido a banda antes, nunca tinha visto o talento e técnica daquele. Assim se distinguiu Knopfler ao longo de mais de quarenta anos de carreira de boa parte dos heróis da guitarra: por não ser mais um chato e azeiteiro com técnica, mas sim um grande escritor de canções, que se consegue meter por uma data de géneros, mesmo nas combinações mais improváveis.

E a parte de palco desta longa e ilustríssima carreira que está, aparentemente, perto do fim. À oitava visita a Portugal correspondeu o público lisboeta (e não só, por entre sotaques alentejanos e minhotos) com casa cheia na Altice Arena, em configuração de todos os lugares sentados, da plateia ao segundo anel. Famílias inteiras à espera de uma última rodada com o maior polegar da História do rock.

Começo pelas 21h12 meio em jeito de funk com Nobody Does That, cançoneta de Down the Road Wherever (Virgin/EMI, Blue Note, 2018). Ainda que mostre a proficiência da banda (em particular os sopros), é uma canção estafada e de letra pouco memorável, sem as histórias e personagens de Knopfler.

Ou o humor de Corned Beef City, uma espécie de aperto de mão heartland rock de refrão orelhudo entre o Reino Unido e os Estados Unidos – ou entre Knopfler e o Boss. Foi, também, a primeira aparição do twang que Knopfler tão bem fez seu, desta feita numa Danelectro.

Knopfler não é mais um músico que está naquela fase da carreira em que toca o que lhe dá na telha e pouco mais interessa – porque já o faz desde o fim dos Dire Straits e a estreia a solo a sério, em 1995/96. Sailing to Philadelphia (do álbum homónimo; Mercury, 2000) é disso um belo exemplo.

Nesta faltou James Taylor, mas não faltou a mescla de folk com roots rock, hoje tão copiada por gente como os The War On Drugs, Steve Gunn ou os Big Thief. Com todo o respeito por Taylor, não demos pela sua falta, até porque Knopfler e seu trabalho de guitarra (ah, a Stratocaster vermelha de Knopfler, seja que versão da guitarra for) deram à versão ao vivo algo raro em concertos em recintos deste tamanho: nuance. Bem podia a canção ser uma espécie de continuação pós-guerra de Brothers in Arms, que a melancolia é a mesma – e porque é sobre a linha Mason-Dixon, a demarcação entre o Sul e o Norte dos Estados Unidos, ergo da Guerra Civil. Um dos portentos da noite.

Era tempo de um díptico de Dire Straits e do começo das maiores ovações da noite. Once Upon a Time in the West cumpridora enquanto montra da evolução do talento de Knopfler ao longo das décadas. Seguiu-se-lhe Romeo and Juliet, um clássico dos clássicos dos Dire Straits; o mero dedilhar dos acordes nas cordas da guitarra ressoadora levantou a Altice Arena (e com ela uma turba de gente sem noção que usa o flash para filmar e fotografar a dezenas de metro do palco).

Foco de luz em Knopfler, matreiro na versão como o Romeu da letra a bater coro à Julieta (ou a quaisquer outras), mas fiel na reprodução do trabalho de estúdio de Making Movies (Vertigo, 1980). De um ponto alto na carreira para um ponto de sentido duvidoso: My Bacon Roll. Alusão à discriminação dos descamisados e a um egoísmo nacional britânico do Brexit ou apenas uma canção mais ou menos desinspirada sobre, bem, uma sandes de toucinho?

Se o Reino Unido dirá ou não adeus à União Europeia (ainda) não sabemos, mas da pouca conversa que Knopfler deu ao público entre canções ficou uma pequena mensagem sobre andar à boleia pelo mundo quando era novo, tal como um olá a Lisboa e a confirmação de que estávamos perante uma despedida, pois ao “olá, Lisboa” seguiu-se um (como noutras paragens da digressão) “o que é certo é que estou velho, portanto tenho de dizer adeus, Lisboa, e obrigado pelas memórias”. A vida de Knopfler em estúdio continuará, mas pelos vistos já não haverá down the road wherever fora daquele.

Do disco assim intitulado saiu uma belíssima Matchstick Man, que deu azo a apresentações à banda (na qual se inclui Guy Fletcher, companheiro dos tempos dos Dire Straits) e a uma incursão pela folk irlandesa (e pelo álbum de estreia, Golden Heart; Vertigo, 1996), com toda a banda em linha empunhando harpas irlandesas, guitarras acústicas, gaitas de foles e acordeões, em Done with Bonaparte. Destas duas últimas retira-se uma toada melancólica em tom de homenagem e de digna elegia à carreira (ao vivo, pelo menos) de Mark Knopfler.

Este pode querer fugir aos Dire Straits e seus maiores clássicos à vontade, mas é inegável que foram estes a arrancar as maiores ovações da noite. Knopfler é, a par do Boss Springsteen, de Jimi Hendrix, de LeBron James e de Bill Walton, dos poucos tipos que pode usar uma bandana na cabeça sem parecer um idiota – mas, tal como James, já não precisa dela para brilhar, porque não passa de um mero objecto nesta fase da vida e da carreira, de uma peça de museu (ou de Hard Rock Cafe).

Pois bem, mal deu de si o saxofone de Your Latest Trick lá foi a casa ao tapete novamente. O público a trautear aquela melodia e umas puxadas na Gibson de Knopfler perfizeram outro momento digno de registo, ainda que não tenha sido a grande interpretação de uma canção de Brothers in Arms (Vertigo, 1985) – essa ainda estava para vir.

De nota uma Postcards from Paraguay que expandiu o registo de estúdio para algo que Chilavert ou Gamarra aplaudiriam. Mas, novamente, o que a malta queria MESMO era Dire Straits.

Ora, se se tratava da despedida dos palcos de Knopfler, nada como ir buscar uma competente execução do quasi-jangle da malha homónima de On Every Street, disco de despedida dos Straits – cuja digressão os trouxe a Portugal duas vezes em 1992, primeiro a Alvalade e depois a Faro. Por falar em Dire Straits, Mark Knopfler e Lisboa e, por conseguinte, na relação Newcastle-Lisboa, relembramos (com todo o respeito pelo mestre) que o melhor momento dessa relação foi mesmo este.

Se Knopfler foi sempre discreto dentro e fora de palco e estúdio e, passe o lugar-comum, deixou sempre a sua música falar por si, a veleidade de trocar de guitarra ressoadora para eléctrica nos catorze minutos de Telegraph Road é mais do que perdoável – é louvável. Canção central na obra dos Dire Straits, é montra de tudo o que gostamos em Knopfler: virtuosismo sem excessos e com gosto e, gaita, com tudo a soar bem. Um grande “tomem lá e vão-se curar” para terminar o alinhamento principal.

No encore, regresso a Brothers in Arms e ida de 2019 para 1985 com esse malhão RUOCK de riff inconfundível chamado Money for Nothing. Se já não estamos no tempo de “I want my MTV” (mais para “I want my Spotify”), certo é que há muita mediocridade de sucesso indevido que merece um enxovalho em forma de riffaço e com arranjos de sintetizador que abanam as costelas.

Só houve tempo para mais uma, Going Home: Theme of the Local Hero, da banda sonora de Local Hero. Perdoem-nos os leitores e Knopfler e sua banda, mas perante um malhão como Money for Nothing e a quantidade de ausências do alinhamento preferimos abandonar a sala quanto antes e ir trauteando as presentes e as ausentes, de modo a sairmos em grande. E porque o trânsito em noite de Altice cheio é, bem, uma chatice de merda.

Pese a quantidade de buracos na setlist, foi uma suposta despedida condigna do guitar hero Mark Knopfler dos nossos palcos, depois de sete ou oito passagens. Quem conhecia bem teve direito a um leque equilibrado do que foi a sua carreira e quem conhecia mal não terá ficado defraudado.

Não foi, pois, money for nothing e, caro Sousa Cintra, perante a iminente saída de Bruno Fernandes, Mark Knopfler poderá finalmente ficar em Lisboa, no plantel do grande Sporting. Troca de grande artista por outro grande artista, por um mestre. Saravá.


sobre o autor

José V. Raposo

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