Reportagem


Mark Lanegan

É possível encontrar um bálsamo na dor

Cinema São Jorge

30/05/2016


Artista de culto para muitos, figura que suscita curiosidade a outros, a verdade é que já todos nos cruzámos com a voz cavernosa de Mark Lanegan em algum momento, de tantos que têm sido os projectos e colaborações do seu percurso, para além da carreira a solo, e na passada segunda feira cruzámo-nos novamente, desta vez no Cinema São Jorge em Lisboa. E para os que ainda não testemunharam ao vivo o arrepio sepulcral que a sua voz de barítono é capaz de arrancar à pele não são aceites desculpas, é que em cerca de um ano esta foi a quinta vez que Lanegan pisou um palco português.

A pouca luz que toda a noite ensombrou o São Jorge foi descendo de um azul luminoso para um vermelho tenebroso. Quando o belga LYENN abriu o palco ainda era possível distinguir-lhe a expressão tímida e os seus sussurros, quando se apresentou, foram rapidamente dissipados pela sua voz limpa e quase angelical, que só surpreendeu na despedida, feita de gritos tortuosos que lhe valeram um aplauso entusiasta.

A luz desceu mais um pouco para tons púrpura e o tom de voz também, com a entrada de Duke Garwood, com quem Lanegan já partilhou o álbum Black Pudding. Há em Duke uma descontracção que lhe é natural na sua folk experimental que quase nos faz questionar as suas origens britânicas, e despede-se deixando-nos um sorriso, “this is the end of the tour, my sweat falls harder than my tears”.

Após um pequeno intervalo onde se reorganizam pedais e amplificadores a noite cai finalmente no São Jorge e voltam ao palco Duke Garwood na guitarra, Frederic “Lyenn” Jacques no baixo, acompanhados do guitarrista Jeff Fielder. Mas é Mark Lanegan que todos tentam distinguir no escuro quando se aproxima do microfone, na sua passada calma e solitária de quem já conheceu um mundo, que deita por terra qualquer moda ridícula de swag ou algo que o valha a que esta geração mais jovem tanto aspira.

Está diante de nós um pedaço de história viva, é um dos originais do grunge de Seattle e os seus Screaming Trees podem nunca ter alcançado a fama dos Nirvana, mas pelo menos o mau augúrio das profecias que diziam que depois de Kurt Cobain, com quem conviveu de perto, seria o próximo a desaparecer tragicamente não se cumpriu. Viveu uma juventude conturbada e no limite, mas a história também deve ser feita daqueles que ultrapassam os seus demónios e Lanegan não esconde os seus “oh the deafening roar, remember that’s called a one way street and you can’t get… can’t get it down without crying”, é com “One Way Street” que começa a noite.

A setlist revisitou muita da discografia de Lanegan, dos seus álbuns de covers I’ll Take Care of You Imitations ouvimos “Creeping Coastline of Lights”, suspirámos na lânguida “I’ll Take Care of You”, mergulhámos nos blues de “Deepest Shade”, fomos embalados na enganadora doce melodia de “Mack the Knife”, desenterrámos sonhos antigos em “You Only Live Twice”, despedimo-nos para o encore com “On Jesus’ Program” e em todas nos esquecemos dos originais, de tal é a forma como Lanegan se apodera delas e as torna somente suas.

Nos originais o primeiro grande aplauso da noite foi arrancado com “The Gravedigger’s Song”, do aclamado Blues Funeral, onde neste formato mais intimista sem o poderio da instrumentação em banda, ficou claro que toda a solidez da muralha que é esta música advém tão somente da figura impassível e da voz inigualável de Lanegan.

Já no encore seguiram-se “Driver” e “Mescalito”, apoiada pelas maracas de Lyenn, do álbum Black Pudding de Lanegan e Duke Garwood, ou o seu “irmão” como nos o apresentou. Houve também espaço para recordar os Screaming Trees em “Where the Twain Shall Meet”, que até custa acreditar que já tenha perto de três décadas, e “Halo of Ashes” que fechou a noite e levou o público a um aplauso desmedido ao brilhante solo da guitarra de Jeff Fielder.

Do mais recente e talvez menos amado Phantom Radio ficou a faltar “Harvest Home”, mas compensada por “Judgement Time”,  “I Am the Wolf” e “Torn Red Heart” a revelar que este lobo solitário também tem um coração capaz de sangrar por amor. Mas em animais feridos não se toca e Lanegan mesmo rodeado por uma multidão parece estar sempre isolado, desmotivando todos aqueles que à saída acalentavam esperanças de conseguir uma fotografia sua quando esteve alguns minutos a dar autógrafos. Sempre de poucas palavras despediu-se de nós levando a mão ao peito num honesto “You guys have been beautiful! Thank you!” e nós agradecemos-lhe também este misto confuso de conforto e tormenta que levamos connosco nesta noite, é que é possível encontrar um bálsamo na dor e um prazer secreto em remexer em feridas que não queremos sarar.

Galeria


(Fotos por Paulo Tavares)

sobre o autor

Vera Brito

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