Reportagem


Massive Attack

Tínhamos ido em busca do passado, vimos afinal o futuro

Campo Pequeno

18/02/2019


© Everything Is New

Que uma banda com as características dos Massive Attack consiga ser tão transversal, reunindo um público tão diverso e vasto (duas datas esgotadas em Lisboa nesta Mezzanine Tour), e que seja, ainda nos dias de hoje, tão impactante (muitos terão abandonado o Campo Pequeno nestas duas últimas noites com a sensação de ter levado um murro no estômago, sem ter percebido por completo aquilo que os atingiu), é assunto que merece escrutínio.

Consideremos o seguinte: em três décadas de existência, a banda de Bristol deu-nos apenas cinco álbuns de estúdio, de assinaturas sonoras distintas, com Mezzanine a ocupar o pódio de popularidade, mesmo depois de já nos termos desapaixonado pelo trip hop; a sua sonoridade, embora não esteja para lá das linhas mais bizarras e disruptivas, também não é propriamente de consumo fácil ou pop; e a sua mensagem de consciencialização com forte carga política, mais incisiva nas perfomances ao vivo, não pretende ser absoluta em razão, deixando sempre espaços em branco para que cada um de nós possa escrever as suas próprias considerações.

Isto apenas para dizer que os Massive Attack nunca foram uma banda óbvia ou fácil de assimilar à primeira e nem sempre estiveram presentes no radar musical, ainda assim conseguiram interligar todos estes pontos de contacto diferentes, numa malha massiva de público que quer ser desafiado e confrontado com a realidade, por mais difícil que seja de engolir. Um público que pretende, acima de tudo, encontrar alento e formas de fazer parte da solução e não do problema. Os Massive Attack oferecem estas portas de reflexão e, para lá dos dedos nas feridas e imagens duras, passam sobretudo uma mensagem de confiança e optimismo. “Estamos presos numa espiral sem fim, está na hora de deixar o passado para trás e começar a construir o futuro” foi a derradeira mensagem com que nos deixaram e que nos foi dando voltas no pensamento já no regresso a casa.

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Houve também claro quem (e foram muitos), nestas duas noites, tivesse ido em busca da nostalgia das memórias que Mezzanine é capaz de resgatar, notória nos telemóveis que se elevaram em uníssono para gravar “Teardrop”, com a própria Elizabeth Fraser (Cocteau Twins), no momento mais aguardado e frágil da noite, que perdeu uma parte da sua magia devido ao burburinho entusiasmado do público que por vezes abafou a música. E um momento que contrastou com as descargas de som pujante que os Massive Attack largaram sobre nós durante grande parte do concerto, transformando a memória plácida (errónea por certo) que tínhamos de Mezzanine, num mar revolto, com correntes capazes tanto de nos submergir ao seu fundo escuro, como de nos cuspir por entre a espuma em redemoinhos.

Revisitar Mezzanine de forma estanque ou em busca de nostalgia nunca foi aliás a intenção de Robert “3D” Del Naja e Grant “Daddy G” Marshall para esta digressão, como afirmaram em várias entrevistas e que pudemos comprovar ao vivo. Do alinhamento, para além dos clássicos com as participações de luxo de Elizabeth Fraser e de Horace Andy (dificilmente teremos nova oportunidade no futuro para ouvir ao vivo este álbum em tamanha plenitude), integraram também uma mão cheia de versões de músicas que estiveram na base de muitos apontamentos de Mezzanine, como “I Found a Reason” dos The Velvet Underground, que iniciou a noite, com a primeira brilhante projecção visual de Adam Curtis, uma colagem de imagens de uma cidade perfeita e ordenada, plástica e estéril, fabricada tal como bonecas numa linha de montagem. Ou a versão para “Bela Lugosi’s Dead” (Bauhaus), com a repetição neurótica de uma gravação de câmara de segurança onde um vulto é baleado, sob olhares vigilantes. E provavelmente o momento mais avassalador da noite: a bela “Where Have All the Flowers Gone?” de Pete Seeger, na voz de Elizabeth Fraser, um sonho de música como pano de fundo para imagens de guerra, destruição e perda incomensurável, as quais já nos habituamos a digerir apáticos por entre todas as banalidades que deslizam pelos nossos ecrãs diariamente, como se de uma realidade alheia se tratasse, incapaz de nos tocar – “oxycodone can cause a dream state like” – ficou o alerta. Para o final ficou guardada a versão mais improvável e desconcertante da noite: “Levels” de Avicii, possivelmente uma das faixas de EDM mais aditivas de sempre, ressoou pelo Campo Pequeno após um irónico excerto de um pasodoble taurino, anestesiando durante breves instantes certamente muitos dos presentes.

Numa noite em que tínhamos ido em busca do passado, vimos afinal o futuro. Deixámos o Campo Pequeno mais despertos do que entrámos, rompendo a bolha confortável dentro da qual diariamente nos protegemos. A tecnologia, a política e a humanidade (ou a falta dela) são certamente os maiores perigos e desafios que enfrentamos, mas encerram também as soluções que precisamos se tivermos a coragem de tomar as rédeas do nosso futuro. “Agora é o teu mundo” aparece em letras garrafais no ecrã do palco – falta-nos apenas acreditar verdadeiramente nisto.

 


sobre o autor

Vera Brito

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