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O black metal é, de todos os sub-géneros do metal, o mais militante e o que menos procurou o sucesso mainstream – se é que o procurou, de todo. Depois do nascimento na década de oitenta com bandas como os Venom, os Sarcófago ou os Bathory, estendeu-se por vários países e foi na Noruega onde a sua face mais visível se mostrou, em inícios da década de noventa, com muitas cinzas e sangue à mistura– nada melhor para perpetuar mais um mito do rock’n’roll, portanto. Os pontos a avaliar seriam, então, se a música aguentaria o peso dos anos, se influenciaria algo de credível ou se se tornaria datada.
No Lisboa Ao Vivo, público típico de concertos de metal: farpela preta obviamente dominante e t-shirts de bandas de variadas proveniências – de Melt Banana a Hellhammer, passando por Bathory, o volume como elo de ligação. Um lamento, porém: apenas um dos convivas logrou equipar-se a rigor com corpse paint. Ambiente de expectativa palpável e pouco ou nada trve no que a agressividade diz respeito, que o que interessava era que a noite fosse memorável. Para além de um Attila em palco estava o At(t)ila nacional no público.
Coube aos portuenses The Ominous Circle abrir as hostilidades. Encapuzados que nem um bando de Kylo Rens, trouxeram tudo o que é preciso num concerto de metal extremo: teatralidade, volume e técnica, com algum conteúdo pelo meio. Editaram Appalling Ascension no início deste ano e serviram um competente aperitivo de blackened doom death metal (ou lá como quiserem categorizar) ou, nas palavras da banda, “Obscure Metal of Death”; grande destaque para o baterista, Marcelo Aires (Colosso), cuja técnica bem ancorou o som da banda, assegurando transições entre sonoridades que nem gente grande.
Assim se provou que o metal nacional está bem entregue, a par de bandas como os Process of Guilt ou os regressados Löbo.
O caso do colectivo britânico Dragged Into Sunlight é curioso: têm intensidade a rodos, a idiossincrasia de, salvo o baterista, tocarem de costas para o público na maior atitude misantrópica e uma mise-en-scène que mais parece uma feira de velharias antes de um concerto – tudo isto daria um concerto deveras interessante, mas a dada altura é uma sobrecarga repetitiva e, bem assim, que farta muito rapidamente. Não obstante alguns apontamentos dignos de nota e de também terem a sonoridade dos Mayhem no seu ADN, não propiciaram um aquecimento por aí além. Muita parr-, muito osso, mas pouca uva.
Pelas 23h45 dobraram os sinos do PA (e uns “SATAN! SATAN!” pelo ar) e a actual versão dos Mayhem foi ocupando o palco: Hellhammer (Jan Axel Blomberg), Attila Csihar, Necrobutcher (Jørn Stubberud), Teloch (Morten Bergeton Iversen) e Ghul (Charles Hedger). Hellhammer, não obstante a quantidade de disparates que proferiu ao longo da carreira, tratou de mostrar o vulto da bateria que é, reforçando que a noite também foi dos bateristas e o porquê, assim de surra, de De Mysteriis… ser o álbum que é e quão influentes são os Mayhem dentro do metal extremo.
Os monges do negrume trataram de ganhar logo a noite, desfilando clássico após clássico: arranque (com alguns problemas no som do microfone, contudo) com Funeral Fog, seguida de uma absolutamente arrasadora Freezing Moon, cumprindo-se escrupulosamente o alinhamento do disco. Tudo soava bem, tudo plasmava com rigor e intensidade a magnum opus da banda. Ritmo frenético de blast beats e quebras que lembravam as melhores tradições do hardcore e todo um trabalho do tandem de guitarras que representa o que de melhor tem o metal extremo.
Tal como os Sex Pistols em 1976/77 (e outros punks nessa altura, no hardcore dos anos oitenta, no gangsta rap e em vários outros), o objectivo do black metal de noventas era chocar, em puro exercício de épater la bourgeoisie. A questão é que o gozo foi levado a um extremo a que só a doença mental, a determinação humana ou a obsessão juvenil (ou todas juntas) podem levar; ao extremo mais inconcebível: igrejas incendiadas, vandalismo abjecto e cadáveres no chão, os do vocalista Dead (Per Yngve Ohlin) e do guitarrista e svengali Euronymous (Øystein Aarseth). Tudo parte do folclore da banda, mas também da mais abjecta e adolescente obsessão que norteava Varg Vikernes (baixista nalgumas canções do disco e o Sr. Burzum) naquela altura.
Mais do que sensacionalismos sobre adoração ao Demónio e combate contra o Cristianismo, o black metal expressa-se fundamentalmente no individualismo e de não se querer ser carneiro (não obstante algumas expressões políticas bastante duvidosas), dando primazia à atmosfera (sonora e visual) e a um som que bem pode ser caracterizado como o lo-fi do metal. Quanto mais sujo e execrável melhor, que há uma selecção natural a fazer, tendo por forma de expressão a blasfémia.
Ao contrário do sucedido em Barroselas há já uns bons anos aquando do cancelamento da banda naquele festival, no cemitério do Alto de São João não houve ocorrências e toda a gente pôde descansar em paz – ainda que não se tenha registado ruído capaz de levantar mortos, só mesmo música.
Pelo meio de rituais e rearranjos de palco, foram cinquenta minutos de espancamento (ou catarse, pelos gestos de alguns), numa interpretação de um álbum que não tem um momento morto (piada intencional) que seja. Sem mácula.
Uma nota especial sobre Attila Csihar, vocalista dos Mayhem (e de muitos outros projectos), incluindo em De Mysteriis…. Já em 2010 o tínhamos visto a dar um imenso show de bola com os Sunn O))), num fenomenal concerto na LX Factory. Num arsenal de versatilidade replicou o material de estúdio que nem um mestre calejado, único na sua maneira de estar, seja pelas máscaras personalizadas, pela pantomina fluída, por tão bem liderar as cerimónias (três noites antes assistimos a outro grande mestre-de-cerimónias em palco, Michael Gira), ora brincando com o fogo enquanto berrava no seu pseudo-canto gregoriano as letras dos infernos, ora fazendo de padre da missa macabra e terminando como um fantasmagórico Hamlet do black metal, empunhando o seu Yorick na sinistra (e fantástica) faixa homónima do álbum.
“We follow with our white eyes, the ceremonial proceeding”, proclamava Csihar por nós – e com toda a razão.
O legado dos Mayhem e de De Mysteriis Dom Sathanas é tão válido quanto o de outro álbum histórico qualquer, ainda que o seu escopo musical seja mais diminuto – quer pelo preconceito de muitos supostos melómanos contra o black metal, quer pela sua paleta sónica mais de nicho. O que se viu e ouviu no Lisboa Ao Vivo não foi mera teatralidade; foi, também, a expressão monumental de que, afinal, a obra dos Mayhem pertence à História do metal e da música popular, preservando a sua autenticidade e qualidade em palco.
Mais ainda, as bandas de abertura são herdeiras na linha recta dos Mayhem, uma prova viva (piada bem intencional) do legado que deixam ao metal e, por extensão, à música popular.
Alas! Que uma noite formidável chegou ao fim.