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A passagem do tempo, por vezes, não faz bem às bandas e artistas, em particular em tudo o que envolva velocidade e agressividade, como é o caso do punk, do metal, do hardcore e derivados. Mudam as personalidades, mudam as opções estilísticas e os ossos e músculos já não são o que eram. Quatro décadas após a sua fundação mas de formação maioritariamente estável há três, o regresso de Napalm Death, grupo fundamental da música extrema, era para nós um tira-teimas – mas também um riscar de nome da lista de desejos de longa data e a vontade de ver uma autêntica instituição da sua lavra, para mais num recinto como o RCA Club, de capacidade ideal para testemunhar coisas destas.
A experiência sensorial (digamos assim) já começava nas cercanias, com o cheiro a Jet A-1 vindo do aeroporto. Um bairro como Alvalade, que representou uma ruptura arquitectónica e urbanística no seu tempo, recebeu uma banda que foi ela própria um golpe estilístico profundo, de ponte entre o punk e o metal, ajudando a criar o grindcore e a construir o death metal.
Quase uma hora antes da abertura de portas já havia fila nas redondezas do RCA. Não era para menos: casa cheia, banda fundamental da sua cena e coadjuvação por uma certeza nacional e talento emergente estrangeiro. Havia história na calha, daquela que arde até ao osso.
Primeiros a ir a jogo foram os lisboetas Systemik Viølence, mescladores de punk, metal e muita porrada, na onda dos compatriotas Carnage e Roädscüm. Proclama o quarteto, com toda a propriedade, que o punk ficou tenrinho e deixou de ser um meio de protesto e ameaça a todo uma superestrutura opressora e violenta para passar a ser só mais um sonzito da música popular. Há que lhe acertar o passo à biqueirada (ou violentá-lo, como noutros tempos). Ou então cuspir-lhe nas ventas.
Minuto dois: primeiro baptismo de cerveja, ao ir um copo a voar até ao tecto do RCA. Enquanto a banda cumpre instrumentalmente o seu manifesto, o vocalista do quarteto da ruína apoda o público de “filhas das putas”, sendo a escalada verbal (como mais um “r” em “porra” ou mais um “o” em “foda-se”) um sinal para andar à stickada. Aquele dá tudo e puxa pela voz ao ponto de parecer que Sakevi, mítico vocalista dos não menos míticos G.I.S.M., se teletransportou para Alvalade – só faltou o lança-chamas.
Faltou o lançador, mas não a chama. Ao minuto vinte e um parafraseia-se Buenaventura Durruti alto e bom som, com um “A ÚNICA IGREJA QUE LUZ É AQUELA QUE ARDE” e vai daí uma versão lancinante de Satanarkist Attack!, a religião da fé nos punhos e da independência de cabeça. Pelo que se viu, os filhas das putas são fiéis da coisa, tão fiéis que até usam a cabeçada para anuir.
Antes disso e para se separar o trigo do joio, um bombardeio dos verdadeiros contra o Poseristão em Punks is Posers. Tempo houve ainda para Dead Cop, porque sem justiça não há paz e, mantendo a linha anti-opressão ao minuto trinta e tal, para Anarquia-Violência, benzina sónica para retirar das nossas costas o alvo, das nossas testas a marca e da nossa dignidade o preço.
Tal foi o aplauso que levantou este último balázio que só se pode concluir que foi um gigante agradecimento aqui dos filhas das putas.
Feita a primeira intentona da noite, debandada para o bar. T-shirts de toda a panóplia do metal extremo e outras com os dizeres “não obedeças mais”; obedeceu-se apenas às ordens da garganta seca. Ainda há quem troque Deus por uma cerveja.
Dois golpes de palheta foram o toque de entrada para a aula de Escuela Grind. O quarteto de Pittsfield (Massachusetts) é o corpo docente de uma academia dotada de departamentos de powerviolence, grind e uns pós de metalcore. Não propriamente praia para o nosso ouvido, mas há que dar sempre uma oportunidade, comparecendo na “aula”.
Oportunidade essa aproveitada em pleno. Porrada, brincadeira e simpatia, muito através de Katerina Economou, vocalista-bomba que é uma Lupe Vélez de microfone. De estoura, estudou bem a língua portuguesa e também aí arrancou aplausos. Se antigamente se cantava por aí “encosta a sua cabecinha no meu ombro e chora”, com Escuela Grind é mesmo roda a tua cabecinha, bate no meu ombro e eu que chore.
Os professores em palco examinaram os discentes do pit nas disciplinas de Moshalhada Geral, Circle Pit (este com direito a bis) e Wall of Death, com aprovações mútuas por distinção e louvor. Alguns discentes continuaram a fazer da beira do palco prolongamento do aeroporto, completado com slots de aterragem em cima do público. Nenhum trem terá ficado inoperacional.
Lufada de ar fresco num panorama de metal que se leva a si próprio demasiado a sério e que tantas vezes desconhece o que seja humor, houve lugar a concurso de berreiro na prova oral do baterista-professor Jesse Fuentes, desde um “hell yeah” (sdds Steve Austin) até a um “poo poo”/”pee pee”, ambos repartidos a vários timbres para avaliar a afinação. E nem um contínuo à vista para pôr termo à rebaldaria, presenteada com amplos elogios e uma canção nova, Punishment Ritual.
Depois de uma mensagem positiva sobre inclusão e participação de minorias na cena musical, a única negativa na pauta dos Escuela Grind foi terem sacado de uma versão de Filth de Hatebreed, o que para este escriba deu chumbo na hora, lamenta-se. Fora isso, não houve faltas de material nem de presença para uma banda pespineta que manteve o nível da noite lá em cima.
A expectativa dava para cortar o ar com uma faca, tendo bastado uma aparição dos membros para verificações de som de última hora para levantar logo um coro geral. Não tardou enquanto o quarteto de Shane Embury, Barney Greenway, Danny Herrera e John Cooke invadisse o palco e desatasse a bombardear o (duplamente, que a cerveja continuava a correr) sedento público. Acabou a negra espera para um público de negro.
Passados quarenta e dois anos desde a fundação da banda (pela qual até o maioral Justin K. Broadrick passou) e não restando nenhum membro fundador, subsistem perguntas: valerá a pena acompanhar uma banda nesta situação de pessoal? Haverá ainda vitalidade? A resposta foi cabalmente dada ao fim de poucos segundos de Narcissus (de Resentment is Always Seismic — a final throw of Throes, mini-álbum de 2022), um embate frontal contra uma muralha sónica de tal maneira forte que houve cabos a soltarem-se da parede – e cerveja a soltar-se para o ar.
As guturais do Greenway de há trinta anos deram lugar ao pujante berreiro do Greenway de 2023, Embury com os bofes de fora ao mesmo tempo que dá ritmo pescoço do baixo acima e abaixo, Cooke massacra no riffismo e Herrera, que passou por dificuldades físicas antes do concerto, assegura que o nó de ruído é cego. Está tudo no sítio, menos a memória de Greenway: “somos desse paraíso utópico que é Birmingham e temos um álbum do qual não me lembro do nome, ainda que isto não seja um peido mental”.
Os Napalm Death foram sempre uma banda militante e também aqui não se fazem rogados nem se lhes falha a memória; proclamam o ridículo que é considerar alguém ilegal e que todos são bem-vindos, sejam legais, ilegais, refugiados, transexuais e oprimidos em geral. Não são, portanto, foco de contágio.
Assim se chegou a um outro elemento recente do cancioneiro dos ingleses, Contagion, de Throes of Joy in the Jaws of Defeatism (2020). Um refrão orelhudo e nova dose de socos no ar e fúria de pit, num destaque da noite.
Continuava-se na velocidade recomendada para o metal extremo e na militância requerida numa banda com o historial de Napalm Death. Ideologicamente, afastam-se de temas do género como o satanismo (Deicide) ou a guerra (Bolt Thrower), professando um anarquismo humanista, que vai desde os direitos das mulheres até ao repúdio pelo fundamentalismo religioso.
E também certa atenção ao calendário. “Quem é que ainda se lembra de 1987? Do punk e dessas merdas horríveis?”, indaga Greenway. Com estas palavras um vocalista vegan provocou muita pele de galinha na plateia, que era tempo de Scum, malhão homónimo, histórico e mais uma data de adjectivos de um álbum/compilação tão mítico que até tem formações diferentes em cada lado do disco.
Obviamente que a interpretação foi de trepar pelas paredes acima, cumprindo-se a etiqueta/humanismo de pit, de ajudar quem foi ao chão a levantar-se. Ou, no caso da organização, de avisar que umas chaves perdidas estariam na recepção à espera do seu dono. “Servisseo Poobleko”, como (mais ou menos) disse Greenway.
A banda – e Greenway em particular – continuou a tocar como moléculas de gás, com destaque para Amoral (“stick that in your pipe and smoke it!”, lançou Greenway) e a intemporal Suffer the Children. A uma adivinha sobre ser-se banido de Washington D.C. seguiu-se uma versão e tanto de Don’t Need It, dos grandes velocistas Bad Brains.
Então e “aquela” malha? Os mais distraídos não deram por You Suffer, canção-recorde do Guinness e piada metaleira – e ainda foram repreendidos pela falta de atenção. Nova interpretação uns minutos depois e deu para uns cromos dizerem que gravaram a faixa toda numa story de Instagram.
Ainda que a noite fosse de inclusão, seja de refugiados ou de pessoas transexuais, havia uma excepção: nazis. O segundo (clássico) cover da noite, Nazi Punks Fuck Off, de Dead Kennedys, foi uma mignardise a cento e tal à hora e um aviso de que o Quarto Reich não é para aqui chamado – nem em Alvalade, nem em Birmingham, nem em lado algum.
Pouco depois terminava a sessão de pancadaria e de como mesclar sons e tribos urbanas com sucesso. Os cornos digitais no ar, as palmas e os gritos do nome da banda por gentes de várias gerações selaram o sucesso de um triplete de concertos digno de memória. As duas primeiras bandas descendem na linha recta de Napalm Death, grupo que nasceu fora da caixa e que assim se foi fazendo, seja com versões de Sonic Youth, colaborações com Sepultura ou uma atitude politicamente homogénea ao longo de quarenta anos.
Na cidade com uma fábrica de unicórnios (seja lá o que isso for), viu-se uma banda que o tem sido desde o seu início: inovadora, inclusiva (unicórnios até nas t-shirts, que já não há pachorra para t-shirts pretas), rápida como um raio e o mais coerente possível, danem-se os presidentes indonésios.
Orgulhosamente escumalha.