Reportagem


NOS Alive

Ao segundo dia, relembrámos de que há uma luz que nunca se apaga e o Evangelho de Grace Jones.

Passeio Marítimo de Algés

12/07/2019


Num farrusco segundo dia de feira abriu-se o expediente com os míticos Primal Scream. Para lá de batidos no nosso País, a banda de Bobby Gillespie não perdeu tempo e atirou-se logo a um clássico absoluto: Movin’ On Up. Em impecável fato cor-de-rosa (sapatos incluídos) mexeu-se que nem serpente pelo palco, o material de Screamadelica (sdds concerto da banda ali mesmo, em 2011) continuando actual, nesta época de miscigenação acentuada de géneros.

Clareiras ainda evidentes e tocando demasiado cedo não desarmaram a mítica banda de Glasgow (mais uma), que sabe animar e mantém os padrões relativamente elevados. E sabe o que a rapaziada quer ouvir ou não fosse a digressão dedicada aos singles, prosseguindo a exibição com Jailbird e Can’t Go Back.

Se a execução cumpriu cabalmente, o público não o fez. Não fossem os lads e os portugueses mais sabedores e parecia que a banda era mais uma para encher chouriços. Quando os deixámos em Miss Lucifer iam de pedal espacial a fundo. E nós também, mas rumo ao palco Sagres, para mais uma dose de anos-oitenta-britânicos-perfeitamente-relevantes.

Nota: em vinte e dois anos de audição de Smiths e derivados esta foi a mísera segunda vez que vimos uma banda do universo ao vivo; um deplorável concerto de Morrissey (fosse só o alinhamento deplorável…) no Coliseu em 2014 – depois de um cancelamento em 2012, e Johnny Marr no NOS Alive este ano. Dez minutos de atraso serviram para uma entrada em palco já de Fender Jaguar na mão e todos os tiques do seu tempo de Smiths, incluindo aquele ombro descaído completamente displicente.

Explodiu a tenda com Bigmouth Strikes Again (tantas piadas que se pode fazer com o Moz de hoje) e a toada não mais acalmou. Desengane-se quem pense que só os êxitos de Smiths e dos Electronic (óptima Getting Away With It) interessaram: Hi Hello (de Call the Comet, 2018) é uma malha e tanto.

Os dez minutos de atraso cercearam a setlist, mas tal até ajudou, que tivemos direito a uma estrondosa How Soon Is Now?, porque somos humanos e queremos malhões. Petulante que nem João Félix mas executando que nem Bruno Fernandes, Marr agradece-nos a atenção, impõe novos arranjos aos clássicos e nunca perde o fio à meada. Um tal Stephen Patrick está completamente esquecido.

Johnny Marr

Johnny Marr

Ponto alto do festival e para memória futura (para aparecer, sabe-se lá, em spots publicitários): There Is a Light That Never Goes Out. Braços no ar, corações ao alto e tudo o que era garganta a cantar esse pedaço de poesia urbano-depressiva saído da pena do tal que só assim é lembrado. Levámos com um autocarro de emoções no focinho e demos cabo da garganta, com várias repetições de refrão no fim. Redenção para este escriba do universo Smiths ao vivo, que há mesmo uma luz que nunca se apaga.

Pelo recinto as pessoas amanhavam-se no chão, reagiam com apatia ao que lhes era apresentado ou moviam-se de palco para palco que nem cavalaria (apeada) mongol. Estes últimos com razão, que havia uns Vampire Weekend para ver no palco NOS.

Factóide de que ninguém quer saber: foram a primeira banda que vimos no palco secundário do Alive, em 2008. Como cresceram: levaram a cabo a renascença de tudo o que é preppy e curioso por afrobeat e pop (mal nenhum) e são agora sete em palco, depois da partida do excelente Rostam Batmanglij. Ah, e o Ezra Koenig continua com cara de menino (como nós próprios).

O que também está na mesma? A qualidade do material. Se Modern Vampires of the City foi uma desilusão, Father of the Bride não vai pelo mesmo caminho e é, até mais e melhor audição, um disco aceitável.

Bem mais do que aceitável foi o bocado de concerto que vimos. À moda de um jamboree cosmopolita do trio de inspirações Talking Heads-Peter Gabriel de Biko-Paul Simon de Graceland, meteu-se a carne toda no assador (White Sky logo ali ao início) e não mais se parou.

Se os chatos formulaicos e berrantes que os antecederam naquele palco só arreliaram com os seus riffs chatíssimos, as melodias dos Vampire Weekend soaram que nem ginjas. Quem não sorri com Cape Cod Kwassa Kwassa não é filho de boa gente e a nova Sunflower é já uma das melhores canções da banda. O público mais à frente aprovava (nem que fosse com o pescoço), o (imbecil) de trás aproveitava para meter conversa em dia e para irromper pelo meio das pessoas e cumprimentá-las para depois se retirar – o Homo Alivensis no seu pior. Última nota: os rapazes de Manhattan voltam lá para o Outono, no Coliseu.

Vampire Weekend

Vampire Weekend

Run foi a deixa para corrermos para o palco Sagres, que pela meia-noite iria entrar em palco a confirmação mais polémica (se forem grunhos do RUOCK) e mais certeira de todo o festival: Grace Jones. Poucos minutos de atraso e o pano preto veio abaixo para uma versão de Nightclubbing do Tio Iggy – ele e Jones mais relevantes do que muito artistinha da treta que para aí anda.

Grace Jones é a artista multifacetada que não tem medo de mostrar a carne. Na plataforma veste-se como se saída da Batalha de Winterfell e anuncia-se como a Prometida, as suas longas pernas passeando palco fora, autêntico vudu visual e sonoro para um concerto histórico. Caríssimos, são setenta e um anos de idade e mais de quarenta de obra musical que estão a ser cantados com um vozeirão de meter medo a essas brolhas da moda. Cardi quem? Nicki quem? Nah, a Tia Grace, perdão, a rainha D. Grace I é que sabe.

Todos os truques saíram do saco: trocas de fatiota (enquanto comunica connosco), marcação do ritmo com dois pratos de bateria em Warm Leatherette (ela atirava-nos o “warm” e a gente o “leatherette”), provocação à infância demasiado religiosa e ao desejo sexual (pirilau cénico presente ou não fosse Jones ícone andrógino, mais umas pernas ao alto que quem dera a muitos futebolistas) em My Jamaican Guy e aquele encontro com o público numa genial, potente e vigorosa Pull Up To The Bumper, acompanhada de dançarino/contorcionista no varão (“I wish I could do that”, dizia ela em óbvio trocadilho) e vestida num misto de Lady Gaga, crista UK 82 e xenomorph.

Como a senhora que é, veio ter com o público sem perder a passada e ainda agradeceu com um beijinho ao segurança que a carregou às cavalitas. “Bem, tenho de aprender português!”, exclamava – mas certo é que ninguém a deixou de perceber (já compreender…). Com Williams’ Blood (do seu último disco, Hurricane, de 2008) atirou um “eu cá gosto de ir à discoteca, mas também de ir à missa, siga lá!” – e lá fomos, na limusine de e pela mão do Evangelho da reverendo Grace Beverly Jones, que terminou aquele sermão com uma Amazing Grace (novo trocadilho), deixando toda a gente rendida. Ora, até aqui já a tínhamos visto como rainha, musa, medusa veneziana (em This Is) e agora vimo-la como deusa. Mais ainda: há disco novo a caminho, segundo a própria.

Entretanto, mais uma versão: Love Is The Drug. A elegância dos smokings de Bryan Ferry deu lugar à elegância felina de Grace Jones e (nunca é demais) ao seu vozeirão apocalíptico, apoiado na plenitude por uma banda e pêras onde pontificava, entre outros, o seu filho – não se deixaram intimidar pelo funk, pelo rock e pelo reggae, deram tudo sem medos e sem merdas. Os confettis voadores eram para ela, mesmo.

O negrume é mesmo o tema deste NOS Alive 2019: o dos The Cure e o de Grace Jones. A noite é deles, a Lua uma flor (como diria William Blake) e somos todos crianças (tal como a noite) seguindo aquele hula hooping de Grace Jones em Slave To The Rhythm. Sim, foram para aí quinze minutos de clássico eterno da diva (mais um epíteto) a girar aquela argola à cintura, agora descalça, proclamando que somos todos escravos do ritmo. Era a despedida do Cabaret Jones, num concerto de top 10 da História do Alive.

Uma última prenda: um desnudar de mamas em cada ponta do palco. Não vos tínhamos dito que Jones não tem pudor em mostrar a carne? O concerto atrasou não por problemas técnicos, mas sim porque não estávamos preparados para a ver, raios partam.

Gossip

Gossip

Saltitámos de volta para o palco principal, onde os Gossip tentavam validar um semblante de relevância em 2019. Pela terceira vez em Algés (após 2008 e 2010), são, hoje em dia, uma amálgama do dance punk de Standing in the Way of Control e de uma espécie de hard rock (incluindo covers). Se o arrivismo (muitas vezes calculista) de Beth Ditto acalmou com os anos, a doçura da sua voz pouco mudou – o problema é que o material da banda envelheceu mal.

Sempre com Brace Paine ao seu lado (este parece mesmo saído de 2007), não esmoreceu com a falta de público e, com uma banda mais musculada musicalmente, deu o concerto possível, mas competente. Yr Mangled Heart e Standing in the Way of Control foram pontos altos (mas faltou uma Keeping You Alive…), mas muito longe da algazarra que foi aquele palco secundário em 2008 (depois de um memorável concerto de Neil Young), o culminar de quase um dia de viagem para cá chegarem e que acabou com o público a dançar no palco – se não nos falha a memória, um “no sleep till Lisbon!”.

A programação de fecho do palco Sagres foi um dos pontos positivos do cartaz, cabendo aos Cut Copy as honras da segunda noite – lembrete de que noutros anos vimos óptimos concertos de Four Tet, 2ManyDJs, Ratatat e Avalanches. Continuam a ser do melhor que se pode encontrar pelas bandas do actual synthpop, electropop ou o que lhe quiserem chamar, sobretudo se começarem concertos com canções como Need You Now, do grande Zonoscope, de 2011. O mote estava dado: abanar o esqueleto.

Os ares de Melbourne fazem-lhes bem, que se apresentaram em forma, com Dan Whitford a dar o exemplo de cumprimento de mote. O alinhamento ajudou: espetar com uma Nobody Lost, Nobody Found é sacanagem para quem sabe o valor de In Ghost Colours, de 2008.

Uma pena que nem todos no público soubessem dar valor a um concerto jeitoso como aquele: eis o Homo Alivensis a dar um ar da sua (falta de graça). Pessoas que não se calam e betos bêbados passando voluntariamente vergonha a tentarem engatar uma Matilde ou Francisca qualquer só se enganaram a elas próprias ao ignorarem o trabalho dos Cut Copy. Da parte da banda, ao momento que abandonámos o palco, o cumprimento da sua obrigação era total e o segundo dia de concertos desta edição do NOS Alive entrou para a História por bons motivos.

Uma derradeira nota: no dia em que passaram cinco (já???) anos da actuação do glorioso colectivo de eurodance no palco Clubbing, registou-se o facto de este ter tido mais gente à tarde no dito palco do que a presente encarnação de Perry Farrell no NOS e do que o trap de Saint Jhn no Clubbing às duas da manhã. Quem sabe, sabe.

 

*Nota: Devido a restrições impostas pela artista não nos foi possível fotografar o concerto de Grace Jones

Galeria


(Fotos por Hugo Rodrigues)

sobre o autor

José V. Raposo

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