Reportagem


NOS Alive 2024 - 1º dia

Do piano aos pesos pesados do rock alternativo e passando pelo hip hop nacional, o primeiro dia do NOS Alive 2024 foi para toda a freguesia.

Passeio Marítimo de Algés

11/07/2024


O calendário marca que estamos plenamente no Verão e em meados de Julho, data tradicional de NOS Alive, que há dezassete anos (descontando-se dois de pandemia) que toma conta do Passeio Marítimo de Algés, com correspondentes enchentes de gente – que por vezes prejudicam quem vai pela música. Perante um cartaz que claramente favorecia bandas de encabeçar cartazes (e de por vezes o excesso de pessoas desgastar a paciência de verdadeiros melómanos), ainda assim foi possível testemunhar, neste nosso regresso cinco anos depois, concertos admiráveis de nomes de toda a projecção. Eis, então, o resumo do primeiro dia do NOS Alive 2024, quinta-feira, 11 de Julho.

 

Conjunto Corona – Palco WTF Clubbing

A peregrinação de ESTILVS MISTICVS levou o Conjunto Corona até Algés, depois de no mês passado terem tido um duelo no Primavera Sound Porto contra os “The Nationals”. O arsenal rítmico, rímico e metafísico fez logo sentir a sua presença, mal o trio composto por dB, Logos e o Homem do Robe pisou o palco situado no meio do recinto.

Depois do crescendo de Perdido na Variante (aqui seria Perdido no IC17) e perante o crescendo de público na tenda, dB exclamou que este seria um bom um dia para “fazer assaltos em Gondomar, que está tudo fora!”. Daí a gritos de apoio a Gondomar (esse clássico) foi uma questão de segundos.

A pairar sobre o concerto não estavam apenas o velho ecrã de fecho de emissão da RTP e a metafísica do Conjunto Corona; também Isaltino Afonso Morais, presidente da Câmara de Oeiras, ex-ministro, ex-recluso e gigante personagem política nacional pairava sobre a actuação. Para além de um convite para almoçar que lhe foi endereçado por David Bruno, houve também lugar para repetidos coros de homenagem ao autarca e, acrescenta este escriba que, em matéria gastronómica, o Isaltino Guide é infinitamente superior ao Guia Michelin.

Leram bem, não se preocupem. Se o Conjunto Corona é extremamente democrático nos seus retratos do bas fond (como uns Fun Lovin’ Criminals lusos) e crendices nacionais e suas personagens, o guia gastronómico de Isaltino dá para todas as carteiras: do frango assado ao arroz de lavagante, não há cá pretensões de parte da cozinha dita de autor nem do marketing enjoativo e repetitivo de uma qualquer food scene que regurgita banalidades culinárias ad nauseam. Uma caldeirada Corona-Isaltino seria de deixar Pantagruel saciado.

No buffet criminal há referências a Vítor Catão e ao Rei dos Catalisadores, interpostas numa invejável sequência de canções de ESTILVS… em que não faltou a Puta da Velha, que também chafurda a quinta-feira alheia. Depois de uma saudação às bandas de versões que tocam no pórtico de entrada do recinto (“uma Satisfaction de cada vez”), a maior ovação da tarde: o hidromel, essa tradição alcoólica de longa data do Conjunto Corona, o momento em que se formaliza a comunhão entre o público e o trio, com o Homem do Robe de garrafa em punho a distribuir hidromel pelas grades (numa pausa das suas investidas no pit), continuando essa história de amor sem fim entre os portugueses e coisas de borla.

Seja mafiando Algés adentro, espetando o Chino no Olho ou relatando o Pontapé nas Costas imobiliário-turístico que temos levado na última década e que nos deixou “na mão dos camones”, não há como um concerto de Conjunto Corona falhar. Seja pela qualidade do material (ou do hidromel) ou pelo imaginário do grupo, o público está rendido e dá uma última réplica em 187 no Bloco. Todos campeões do gesso e todos demasiado gentis. E todos de almoço marcado com o Isaltino.

 

Conjunto Corona

 

Uma pausa para respirar depois do bombardeamento do Conjunto Corona e toca de seguir para o palco NOS, onde a toada de ter o público na mão (ou parte dele, como se verá) continuava, desta feita com Benjamin Clementine.

 

Benjamin Clementine – Palco NOS

Não é fácil classificar Benjamin Clementine enquanto artista; reduzi-lo a músico é injusto e chamar-lhe “artista multifacetado” soa a equiparação a um carro cheio de extras. Assim, fiquemo-nos simplesmente por “artista”, que estamos diante de alguém que cria em estúdio e interpreta em palco e no cinema. E cuja obra destoa do resto do cartaz do festival.

Quando chegámos ao palco principal estava Clementine a enviar condolências – perguntando pelo meio como se diz “condolências” em português (“condolenzos?”) – aos seus falhanços e inseguranças ou, por outras palavras, a interpretar uma das suas primeiras grandes composições, Condolence. Um vozeirão de tenor capaz de levantar vagalhões ali ao lado no Tejo (ou de mandar abaixo o Sol), uma guitarra e um piano que são uma armas para exorcismos e exaltações de toda a espécie e um septeto de cordas para lançar os arranjos das canções preenchem sumariamente o palco.

Clementine e banda atiram-se de seguida a uma enorme Jupiter; se há minutos foram enterradas as pechas da alma, agora é explicado o estranho sentimento de se ter sido considerado como um “visitante de extraordinário talento” na atribuição de um visto de entrada nos Estados Unidos. Parece uma balela com acordes, mas para quem ainda há pouco mais de uma década viveu na rua, a contar tostões e nem sequer tinha meios para se deslocar até à sua própria actuação, é uma história dignamente contada.

Uma pena, contudo, que nem toda a gente estivesse disposta a ouvi-la. Ainda que seja um problema de concertos de várias dimensões (sim, porque até em concertos do chamado “underground” há metralhadoras falantes), a maior nódoa do NOS Alive é, desde há alguns anos, atrair público que vai ao festival para fazer tudo menos ver concertos – e vai ser um problema infelizmente recorrente, como se lerá.

Queremos ouvir Benjamin Clementine e sua banda e não o falatório e cumprimentos exageradamente longos de quem está ao nosso lado (para mais havendo gente de costas para o palco). O artista deita cá para fora o seu imenso talento – e logo numa veia altamente emocional e com arranjos com alguma complexidade – enquanto cá em baixo na plateia certo tipo de sub-espécie indígena parece mais interessada em bolçar onde comprou o outfit do dia ou onde o João e a Maria vão passar férias este ano e se finalmente vão casar. Ah, a falta que fazem umas amonas ali ao lado.

Se ali estamos no ponto mais rasteiro do público de um concerto, em palco era tempo de pontos altos como Phantom of Aleppoville, representativa de uma obra que se por vezes é mais acessível em estúdio do que no passado, ao vivo o seu criador recusa-se terminantemente a enveredar pelo fácil.

Queixumes de Clementine? Nenhuns, até porque tivemos direito a uma notável I Won’t Complain, autêntico antidepressivo e hino ao estoicismo; Clementine só precisaria de um piano para ser feliz, não fossem as exigências da vida em sociedade. Ele não se queixará, de qualquer modo.

“Quem está apaixonado?”, perguntou-nos. Recebendo de resposta uma ovação, retorquiu com um “estão bem lixados, então!”, prosseguindo para Genesis. O cabaré do franciscano Clementine encerrava o expediente, num voo melódico impressionante. Para quem já por cá actuou mais de vinte vezes, um dos melhores elogios que se lhe pode fazer é que raramente são os seus concertos similares, registando-se diferenças umas vezes mais evidentes e noutras mais subtis.

Como grande artista, tudo lhe saiu com facilidade. Seja como um discípulo pós-contemporâneo de Diamanda Galás quando está ao piano ou como um Cab Calloway do século XXI quando deambula descalço pelo palco desfiando ideias, o poderio é suficiente para fazer esquecer os baixos do palco Clubbing e para se concluir de que este é um dos grandes concertos desta edição do festival.

Breve retirada para a zona de imprensa para forrar o estômago, que daí a não muito tempo viria nova investida sobre o palco NOS. O reencontro com a actual encarnação dos Smashing Pumpkins (que contou com novidades na formação) era a próxima etapa deste primeiro dia de NOS Alive.

 

Benjamin Clementine

 

Smashing Pumpkins – Palco NOS

[Nota: por limitações impostas pela banda não foi possível fotografar o concerto]

Para alguém que é fanático da luta livre norte-americana, Billy Corgan tem sido, neste anos de reunião dos Smashing Pumpkins (que já são mais do que o tempo no activo da formação original), atreito a atitudes de autêntica heel turn, isto é, de quem passa de herói a vilão. Ainda que tenhamos feito as pazes com o grupo de Chicago (mas com muito drama de tablóide de Los Angeles, graças a Corgan) aqui mesmo em 2019, continuamos (opinião deste escriba) a não passar grande cartão ao trabalho de estúdio pós-2000.

A enchente que se via no palco NOS (mais andar pelo recinto e ouvir, várias vezes, pessoas a perguntar a que horas eram os “Smashing) para ver a versão de 2024 da banda de Billy Corgan, James Iha e Jimmy Chamberlin contradiz quaisquer más-línguas sobre um declínio (ao vivo, pelo menos) da banda. A popularidade continua em altas e este é claramente um dos nomes que mais gente trouxe a Algés. Para mais que haveria sempre certa frustração de faltar qualquer coisa fundamental no alinhamento.

Indulgência completa à heel em colocar ATUM (bem longe de atum-rabilho musical, diga-se) no PA antes da entrada em palco. Entrando em palco novamente de sotaina negra e com ar triunfalmente circunspecto (passe a aparente contradição), Corgan continua a ser o diácono das guitarras liderando uma carga furiosa em The Everlasting Gaze, do último verdadeiramente bom registo da banda, o imbecilmente mal amado Machina/The Machines of God (2000).

Contudo, a entrada de Kiki Wong (mutatis mutandis uma “personalidade” do Instagram) para as guitarras alterou a dinâmica sónica dos Smashing Pumpkins. O som da sua Jackson impele o grupo para um território perigosamente próximo do metal – mais concretamente do metalcore. Será alguma crise de Corgan ou mais um trollanço indulgente da sua parte, parte da tal metamorfose para heel?

Tudo regressa aparentemente ao normal em Today, que nos lembra que Siamese Dream, um dos grandes álbuns dos anos noventa, chegou aos trinta anos no ano passado. Bem, não tendo hoje sido o melhor dia que já conhecemos, esta interpretação de uma malhona (a primeira que alguma vez ouvimos da banda, vendo a MTV ainda nos tempos da parabólica) ajudou a compor a coisa.

Com efeito, as diferenças notam-se sobretudo no material pós-reunião, no qual Corgan é rei e senhor no processo criativo. Ainda assim e como em equipa que ganha não se mexe (e porque o legado de Corgan e, por extensão, da banda, depende de manter o passado em boa forma) é impossível asnear em Tonight, Tonight (memorável apogeu criativo da banda), Disarm (como manter uma canção acústica imaculada perante milhares de pessoas), uma visceral Bullet With Butterfly Wings e uma 1979 para confirmar que não adianta perder muito tempo com o material recente, que a maior ovação será sempre para aquele que melhor envelheceu.

E por falar em tempos idos, Billy Corgan e James Iha relembram a noite de 2 de Maio de 1996 (“James, lembras-te da noite na praça de touros? Em Casquish [Cascais, concerto esse que ouvimos da varanda do quarto]? Estava a chover!”), data do mítico concerto na praça de touros de Cascais que selou a admiração mútua entre os Smashing Pumpkins e o público português, que teve direito a mais uns elogios de Billy Corgan, que declarou amar Portugal e Lisboa e que este é o seu sítio preferido neste mundo para tocar. Da nossa parte, se gostas tanto devias tocar a Hummer aqui para a malta, que life’s a bummer when you love Hummer e o raio da canção parece que não existe no repertório ao vivo do grupo.

A banda continua óptima tecnicamente, não se lhes ouvindo um prego ou algo fora do sítio. Entre a nuance do jazz e a energia da rockalhada, Jimmy Chamberlin é um dos melhores bateristas que o rock dito alternativo já (ou)viu (e não será o único nesta edição do festival) e só ele para dar alguma graça a material como Empires ou Beguiled, enquanto a discrição de Iha contrasta com o Nosferatu de Chicago armado em estrela da pop deambulando pela plataforma que prolonga o palco até à plateia em Ava Adore.

Se ainda há pouco os Pumpkins pareciam uma banda de metalcore, nesse mistério de canção (por nunca ter sido lançada a sua versão de estúdio) chamada Gossamer estamos diante dos Crimson Pumpkins, com direito a uma fila de solos de Corgan, Iha e Chamberlin.

Tudo muito bem conseguido, mas estava-se ali para voltar aos verdadeiros clássicos da banda. Cherub Rock e a sua wall of sound (em Algés ainda mais, que três guitarras fazem muito barulho) e o seu solo monstruosamente simples mas incrível relembraram-nos porque é que não havia pai para os Pumpkins em meados e finais da década de noventa.

O carimbo final nesta convicção foi aposto com Zero, que encimou um concerto eficiente no quesito execução e com distinção e louvor no que diz respeito à nostalgia. Enquanto houver estrada da lembrança para andar, o monsenhor heel das guitarras cá estará para tocar.

Há vinte anos, ninguém diria que uma banda como os Smashing Pumpkins (para mais que entretanto regressada ao activo) não fosse cabeça de cartaz, mas a ascensão sustentada dos Arcade Fire dita que estes sejam os maiorais da noite. E, como tal, têm direito a texto próprio.

 

Jessie Ware

 

A terminar este primeiro dia estava Jessie Ware, desta vez no palco Heineken. Questões de horário tardio impediram-nos de assistir a toda a actuação dos seus prazeres pop, mas pelo pouco que se viu a Nossa Senhora de Coura de 2023 continuou a fazer milagres, desta feita à beira do Tejo.

Uma nota final para questões de acessibilidades para pessoas de mobilidade reduzida. Vendo-se no recinto aquando dos concertos e na fila de saída várias pessoas com muletas ou em cadeira de rodas em nítidas dificuldades de circulação por entre milhares de pessoas (em especial na rotunda junto à estação de comboios de Algés), são necessárias melhorias neste aspecto (como por exemplo uma saída específica para que o transporte pessoal possa recolher estes espectadores), para que o tal sonho/lema do festival se cumpra para todos.

Dito isto, na sexta-feira, dia 12 de Julho, havia mais para ver, incluindo mais prazeres pop de topo.

Galeria


(Fotos por Hugo Rodrigues)

sobre o autor

José V. Raposo

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