Reportagem


Nothing + Ricardo Remédio

A melancolia dos pensamentos abafada pela histeria do quotidiano.

MusicBox

07/10/2016


O Verão já lá vai e o Outono vai-se instalando, descendo a temperatura e matando a alegria (?) da silly season. Muda, pois, o cardápio musical; por esta altura, estaríamos pelo Amplifest, mas como os Neurosis obrigaram o peso a deitar-se ao sol de Agosto, a Amplificasom comemorou mais uma data de relevo da Pátria com música – depois de Wovenhand a 5 de Outubro de 2014 e de The Body a 25 de Abril do corrente, tivemos esta dupla por volta do 5 de Outubro. A abrir a noite de sexta-feira estaria Ricardo Remédio, nome já sobejamente conhecido de quem acompanha a música nacional que interessa.

Depois do tempo em que era conhecido artisticamente por RA e dos LÖBO (que ainda há uma semana actuaram nas redondezas), Ricardo Remédio traz-nos agora o seu novíssimo Natureza Morta, co-produzido por Daniel O’Sullivan, nome de gabarito que já colaborou com os Ulver, Grumbling Fur e Sunn O))), entre outros. A par de ATILA (agora só com um “L”), Remédio é um nome cimeiro nas andanças da música electrónica experimental portuguesa – seja nas power electronics ou na ambient mais negra.

Tal como no seu álbum e porque eram 21h40 (hora da janta, portanto), arrancou com “Banquete”, montra dark ambient que revela sofisticação que não se ouvia nos tempos em que era RA. Do banquete restaram os “Ossos”, que meteu pescoços a seguir o ritmo e globos oculares a seguir o que passou por melodia. Passagens fluídas, percorrendo-se sonicamente várias paisagens, incluindo um excurso que bem recordou Com Truise.

Ricardo Remédio

Ricardo Remédio

Em cerca de meia hora andámos pelo labirinto enegrecido das novidades de Ricardo Remédio, que continuará a dar que falar, devidamente apoiado pela Dissociated Records, parte integrante da nacional Signal Rex, e em colaboração com nomes distintos como O’Sullivan ou os Vaee Solis.

Um piano no PA trouxe os Nothing para o palco. O seu shoegaze contemporâneo – diferente de uns Weekend ou Tamaryn – está completamente mergulhado numa melancolia particular não apenas por opção artística, mas também porque a vida dos membros da banda não tem sido fácil – penas de prisão, mortes, alcoolismo, arruaças Internet fora e broncas com editoras e distribuidores farmacêuticos sem escrúpulos. Uns Hans Moleman com guitarras, portanto.

Como têm vindo a fazer na mais longa digressão que já levaram a cabo (segundo Dominic Palermo, principal compositor da banda) deram-nos volume logo à primeira, com “Fever Queen”. Misto contundente de shoegaze e post-rock num MusicBox muito bem composto.

À segunda canção, “Vertigo Flowers”, passou-se para a quarta mudança, isto é, de Slowdive para Swervedriver – e para um aviso: “Watch out for those who dare to say/Everything is going to be okay”. Assim se constata que a vida complicada de Palermo e companhia tem vertido para as letras da banda.

Confortavelmente embalados pelo volume e pelo noise dos Nothing, confirmamos uma suspeita: de que o seu material é bastante superior ao vivo. Na mistura o volume dos instrumentos é mantido propositadamente mais alto do que o dos microfones, o que ajuda a criar o ambiente ideal para a interpretação dos temas: a melancolia dos pensamentos abafada pela histeria do quotidiano.

“Gostamos de Portugal, acho que ficamos por cá. Alguém safa um sofá?”, perguntou Palermo. Alguém que lhes fale nos vistos gold, que já não terão de cravar sofá a ninguém. Do hipotético futuro para o passado, que era hora de revisitar Guilty of Everything, disco de estreia dos Nothing, de 2014.

Nothing

Nothing

Título esse que se lia em vestuário do público; de facto, a música dos Nothing, incluindo as vozes trémulas de Palermo e Brandon Setta, espelha o conteúdo das canções, de distúrbio interior causado pelo peso das tragédias de tudo e todos nos ombros de quem compõe e de muitos que ouvem – uns Atlas com pedais de distorção.

“Eaten by Worms” marcou o regresso a Tired of Tomorrow, a uma linha post-gaze menos interessante dos Nothing. “Abcessive Compulsive Disorder” arrancou os maiores aplausos da noite, atestando que os presentes sabiam ao que vinham – só não sabiam que lhes cravariam sofá, vinho e boleias aqui no “melhor sítio da Europa”, a Península Ibérica.

Infelizmente, as cordas do baixo de Nick Bassett e da guitarra de Brandon Setta fizeram greve, obrigando a mais paleio por parte de Palermo – que nos confidenciou mais agruras da vida. So, anyway, ficámos a saber que uma prima deste tem a mania que é uma Naomi Petersen (do aterro, claro), o que o levou a que encerrasse a conta no Facebook, de tão más que eram as fotografias. Contudo, a prova de que estava perante shoegaze: uma Fender Jaguar, um dos instrumentos de trabalho deste nas mãos de Setta. Fechou a conta, mas tocou “B&E”, nova invasão da propriedade do post-gaze. “It’s so nice to wake up in the morning all alone / And not have to tell somebody you love them when you don’t love them any more” de Richard Brautigan em loop abriu o fim do alinhamento principal.

A riffalhada orelhuda e distorcida, a catarse pela onda de barulho típica do género e a intensidade de obcecados pelo noise cruzam-se aqui com uma compulsão pela melodia, a vários tempos – “Bent Nail” foi dos melhores momentos da noite. “Dig”, única canção do regresso ao palco, é exemplo da descrição supra.

Mal refeitos da sessão, todos deram por terminada a partida no Cais do Sodré, com um resultado condigno no marcador. Fica a sugestão: se Palermo tinha um autocolante dos Meat Puppets na guitarra, pois que faça uma versão de uma canção daqueles – porque não “Lake of Fire”, testemunho do sofrimento alheio? Cá a esperamos, no Cais do Sodré ou no Hard Club, sem prisão efectiva, só distorção.

Galeria


(Fotos por Cláudia Andrade)

sobre o autor

José V. Raposo

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